50 ANOS DA NOVA MISSA (PARTE 5): DOM GUÉRANGER E O MOVIMENTO LITÚRGICO (CONTINUAÇÃO)

Abadia de Solesmes, restaurada e ilustrada por Dom Guéranger

Fonte: DICI – Tradução: Dominus Est

Os primeiros quatro artigos nos trouxeram ao século XIX, para Dom Guéranger e para seu magnífico trabalho de restauração da liturgia Romana, prelúdio e começo do movimento litúrgico. Há, entretanto, no trabalho do fundador de Solesmes, uma passagem notável que se amolda alegremente ao estudo da nova missa.

Heresia Anti-Litúrgica

No XIVº Capítulo do primeiro livro das ‘Instituições Litúrgicas’, Dom Guéranger caracteriza o espírito anti-litúrgico em suas várias manifestações falando de heresia. Por esse termo, que repeliu o Padre Lacordaire que entendeu isso em sentido estrito, ele [Dom Guéranger] não quis significar a negação ou recusa de verdades reveladas pela fé.

Sob o nome de heresia anti-litúrgica, Dom Guéranger descreve um espírito, uma atitude na qual “vai contra as formas de adoração”. Ele procede essencialmente pelo modo de negação ou destruição, que inclui qualquer transformação que perturba ao pont de desfigurar. Ele sempre procede de uma razão profunda, que tem como alvo as crenças em si, em razão do elo íntimo entre liturgia e credo.

Dom Guéranger não hesita em qualificar como sectários aqueles que trabalham para destruir a liturgia em quaisquer tempo que seja. Admitidamente, na maioria dos casos, eles não são organizados entre si. Mas suas ações procedem do mesmo motivo. Dom Guéranger não hesita em agrupá-los sobre o nome geral de seita.

O autor de ‘Instituições Litúrgicas’ descobriu a primeira manifestação disso [heresia anti-liturgica em Vigilance, um padre da Gália [Nome da atual região da França nos tempos do Império Romano] nascido por volta do ano 370. Ele criticava a veneração das relíquias dos santos, bem como o simbolismo das cerimônias, atacou o celibato de ministros sacros e vida religiosa, “tudo para manter a pureza da Cristianismo”.

Dom Guéranger percorre toda a história da Igreja e para no Protestantismo, no qual ele descobre como a quintessência da heresia anti-litúrgica. Essa é a razão pela qual ele propõe a sistematização dessa atitude em 12 pontos. O interessa capital dessa descrição é prover um meios seguros de lavar essa heresia de onde ela esteja escondida, e uma chave para entender a revolução litúrgica empreendida pelo Concílio Vaticano II.

Um espírito Inovador que rejeita a Tradição

“A primeira característica da heresia anti-litúrgica é o ódio à Tradição nas fórmulas de adoração divina”. A razão é clara: “qualquer sectário desejando a introdução de uma nova doutrina, se encontra infalivelmente na presença da Liturgia, que é a tradição em  seu mais alto poder, e não pode haver descanso até que ele tenha silenciado essa voz, até que ele tenha despedaçado essas páginas que guardam a fé de séculos passados. “o Modernismo, querendo introduzir suas doutrinas perniciosas, não poderia ignorar a liturgia: ela deveria ser corrompida ou não se obteria sucesso.

O segundo princípio, de acordo com Dom Guéranger, é a vontade de trocar as fórmulas de estilo eclesiástico por leituras da Sagrada Escritura. Isso faz possível silenciar a voz da Tradição , que é o que a seita teme acima de tudo; e isso providencia um modo de propagar ideias através de negações ou afirmações. Pelo modo de negação: “passando em silêncio, por meio de escolhas habilidosas, os textos que expressam a doutrina oposta a os erros que queremos propagar; pelo modo de afirmação, por destacar passagens truncadas que apenas mostram um lado da verdade.”

Esse princípio foi aplicado no Novus Ordo Missae promulgado por Paulo VI: pela adição de textos da Sagrada Escritura por um lado, e pela eliminação ou modificação de orações muito antigas e veneráveis do Missal Romano. Esse ponto merece um livro. Quatro exemplos: a retirada do ofertório Romano, considerado como se em“duplicidade”;a expressão de desprezo com as coisas desse mundo – despicere terrena – que era encontrada ao menos 15 vezes no Missal Tridentino, e que é encontrada apenas uma única vez no novo missal; o desaparecimento da menção da alma na missa de réquiem; e finalmente a remoção da parte do Kyrie.

O terceiro princípio consiste em manufaturar e introduzir várias fórmulas para encorajar inovações. Esse é o caso com os três novos cânons da reforma da missa de Paulo VI. O segundo cânon é uma perigosa reconstrução de uma oração antiga composta por um autor que foi apresentado como São Hipólito, mas quem até o dia de hoje, não sabemos realmente quem ele era. O cânon número 4 foi inteiramente escrito por um liturgista que  que terminou seu trabalho no canto da mesa de um restaurante. Mencionamos também as mudanças introduzidas nos ritos dos sete sacramentos, os quais todos foram revistos. Isso nunca foi visto na história da Igreja.

O quarto princípio dos proponentes da seita anti-litúrgica é “uma usual contradição com seus próprios princípios”. A passagem inteira é citada como se descrevesse nossas modernas liturgias: “Assim, todos os sectários, sem exceção, começam por clamar os direitos de antiguidade [os quais Pio XII condenou entre os modernos como “arqueologia”]; eles não querem nada a não ser o primitivo e pretendem com isso levar de volta ao berço, as instituições cristãs. Para essa finalidade, eles podam, apagam, entrincheiram, e tudo cai sob seus golpes e quando nós esperamos ver a adoração divina reaparecer em sua pureza original, verifica-se que estamos sobrecarregados com novas fórmulas que datam apenas do dia anterior, que são incontestavelmente humanas, já que quem as escreveu ainda vive”.

Cardeal Louis-Edouard Pie, grande amigo e defensor de Dom Guéranger

O Espírito Racionalista

O quinto principio quer “cortar da adoração todas as cerimônias, todas as fórmulas que expressam mistérios.” É notório que neo-liturgistas querem fazer a liturgia “acessível”, promovendo a “participação ativa”. Dom Guéranger continua: “Não há mais um altar, mas simplesmente uma mesa; não mais sacrifício, como em qualquer religião, mas apenas uma ceia; não mais uma igreja, mas simplesmente um templo, como dentre os Gregos e Romanos; não há mais arquitetura religiosa, desde que não há mais mistérios; não há mais pinturas e esculturas cristãs, desde que não há mais nenhuma religião sensível; finalmente, não há mais poesia em um culto que não é fertilizado nem por amor nem pela fé.” A loucura iconoclasta que seguiu-se ao Concílio [Vaticano II] é a testemunha irrefutável que confirma essa análise.  Quanto à arquitetura e arte litúrgica, verdadeiras, estas sobreviveram.

O sexto princípio atesta que a remoção das coisas misteriosas produzem “a total extinção do espírito de oração que  é chamado unção no Catolicismo.” a revolução litúrgica pós-conciliar produziu um enfraquecimento da fé e um secamento da piedade, que foi verificada pela vertiginosa queda  da prática sacramental.

O sétimo princípio exclui a veneração da Virgem e dos santos. Esse princípio, que perfeitamente ilustra o que ocorreu no protestantismo, não foi expressado com o mesmo vigor na reforma corrente. Mas existe, nas modernas liturgias, uma depreciação da devoção Mariana e a veneração dos santos, bem como nas formas em que se manifestam. Devido ao profundo apego de certas regiões católicas a essas devoções, a sua manifestação [do sétimo princípio] permanece limitada e variável dependendo do local.

O oitavo princípio é formulado por Dom Guéranger: “A reforma litúrgica tendo como um de seus principais propósitos a abolição dos atos e fórmulas místicos, necessariamente segue que seus autores tenham que clamar o uso da linguagem vernácula no serviço divino. Isso é, portanto, um dos pontos mais importantes aos olhos dos sectários.” O monge beneditino continua: ”Seremos francos, foi um golpe de mestre do protestantismo ter declarado guerra à linguagem sagrada; se ele pudesse destruir ela com sucesso, seu triunfo estaria bem mais avançado. Oferecida a olhos profanos, como uma virgem desonrada, a Liturgia a partir desse momento teria perdido seu caráter sagrado, e as pessoas logo descobrirão que não vale a pena deixar de se preocupar com o seu trabalho ou com prazeres para ir na missa e ouvir falar como falam numa praça pública “. Que as autoridades eclesiásticas se dignem reconhecer que o aviso do fundador de Solesmes foi profético.

Consequências privadas e sociais

No nono princípio o autor mostra que “removendo da liturgia o mistério que exceptua a razão, o protestantismo foi cuidadoso em não esquecer as consequências práticas, nominadamente houve a emancipação da fadiga e desconforto que se impõe ao corpo com as práticas da liturgia (…)[emancipação] do jejum, da abstinência; da genuflexão na oração; das orações canônicas que eram feitas em nome da Igreja pelo o ministro do templo “. O resultado é uma diminuição “da soma de orações públicas e especiais”.

O décimo princípio recusa o poder papal. Se essa recusa é categórica e definitiva no protestantismo, não é menos vívida no Modernismo. Hoje a corrente que busca retirar do papado suas prerrogativas – já em prática pelos textos do Concílio sobre a colegialidade –  retomou o vigor com a cumplicidade do próprio Papa que sempre intenciona em “descentralizar”.

O décimo primeiro princípio afirma que a heresia anti-litúrgica necessita “destruir de fato e de princípio todo sacerdócio.” Novamente, o protestantismo foi radical. Mas o Modernismo, na assimilação do sacerdócio comum dos fiéis e do sacerdócio ordenado, os distingue apenas em graus do mesmo sacerdócio, de fato atingindo os mesmos resultados do protestantismo. Entre os protestantes, há apenas leigos, porque não há mias liturgia sagrada. Entre os Modernistas, o padre atua quase em par com a assembleia em uma liturgia desfigurada.

O décimo segundo princípio corresponde à submissão do Protestantismo aos poderes temporais, pela perda do centro unificador que são Roma e o papa. No modernismo, isso resulta em uma força centrífuga que tende a separar as igrejas nacionais umas das outras. Isso é incorporado  pela linguagem litúrgica passada ao vernáculo, pelo aumento de poderes descentralizados, pelo espírito democrático que se infiltra sobre o disfarce da sinodalidade. Uma implementação completa desse princípio está sendo cumprida hoje pela Alemanha através do “caminho sinodal”.

Seu profundo conhecimento da liturgia católica e seu grande amor por ela, permitiram a Dom Guéranger apropriar-se de sua grandeza. Em contrate, isso o levou a identificar  as constantes do espírito anti-litúrgico. Seu trabalho oferece um diagnóstico precioso de nosso tempo, testemunha de uma verdadeira destruição furiosa da liturgia Católica.