A CRÍTICA DO VATICANO II

Concílio Vaticano II. Um Guia de Leitura | by IHU | Instituto Humanitas  Unisinos | Medium

Fonte: Courrier de Rome  n.º 335, julho-agosto de 2010 – Tradução: Dominus Est

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

«Por uma contradição boba, surgem discussões sobre o que deveria ser julgado com um rápido olhar e os debates começam entre os próprios críticos»[1]. Seria necessário ainda começar por entender o sentido da palavra «crítica»…

1 – Prólogo: a crítica

1.1 – Definição etimológica

A palavra «crítica» vem de um verbo grego que significa «julgar». Segundo essa definição nominal, a crítica é o ato do juízo. O ato do juízo é aquele em que o intelecto afirma ou nega atribuindo ou negando uma qualidade, boa ou má, a um sujeito.

1.2 – Os diferentes sentidos possíveis da palavra

Fala-se mais frequentemente de «crítica» quando o juízo tem por objeto atos do intelecto ou da vontade. Por exemplo, critica-se o comportamento de seus semelhantes porque se exerce um juízo sobre os atos de vontade do outro; ou ainda criticam-se opiniões porque se exerce um juízo sobre outros juízos. Fala-se também de «crítica», mas não a respeito das operações humanas, mas a respeito das obras artificiais que podem resultar delas: crítica das obras de arte mecânica (tal como pode ocorrer no âmbito de competições agrícolas) ou crítica das belas artes (como a crítica literária).

Em um sentido particular, o juízo que se exerce sobre o ato do intelecto enquanto tal (na medida em que ele é o ponto de partida válido de toda especulação) pertence propriamente à sabedoria metafísica. E o juízo que se exerce sobre o ato de fé teologal enquanto tal pertence propriamente à teologia, na sua parte apologética. Enfim, fala-se também de «crítica» num sentido pejorativo, para denominar o juízo injusto, que se produz de dois modos: no caso do juízo temerário[2], quando aquele que pretende julgar não tem o conhecimento requerido – necessário e suficiente – para poder fazê-lo; ou no caso do juízo usurpado[3], quando aquele que pretende julgar não possui a autoridade requerida para poder fazê-lo.

No primeiro caso[4], há, em primeiro lugar e antes de tudo, uma ignorância, que levará a um erro e depois a uma injustiça[5]; no segundo caso[6], há primeiro e antes de tudo uma injustiça[7] que levará à outra injustiça[8], mesmo se não houver nem e ignorância e nem erro. Mas nos dois casos, a injustiça do juízo não consiste em decidir mal ao invés de decidir bem: o juízo é injusto na precisa medida em que aquele que julga (favoravelmente ou não, pouco importa) não pode reivindicar, valendo-se de seus dizeres, nem a ciência e nem a autoridade suficientes.

1.3 – Primeira consequência dessas distinções: «contra aqueles difíceis de agradar»

Na maior parte das vezes, as desordens que destroem a paz numa sociedade, e que acabam inclusive trazendo prejuízo ao bem pessoal dos indivíduos, têm por origem esses dois tipos de juízos injustos. Há aí uma consequência manifesta do pecado. E o individualismo moderno, nascido na Revolução, não faz senão agravar, até proporções inauditas, essa má inclinação. Cada um tem uma opinião sobre tudo, e essa opinião é tão mais rapidamente dita quanto mais flagrante for a incompetência e menos comprovada for a autoridade.

Hoje, o primeiro (ou melhor, o último) a chegar não hesita em opor-se, com inabalável confiança e em questões complexas e difíceis, ao parecer esclarecido dos entendidos que estudaram um determinado assunto por toda sua vida. E aqueles que geralmente ignoram as circunstâncias concretas das quais dependem uma decisão carregada de consequências, tratam como crianças os homens de experiência que, sobre o assunto, ponderaram demoradamente os prós e os contras antes de tomar o lado mais sábio. Cada indivíduo dogmatiza e pronuncia suas sentenças irreformáveis para invalidar sem outra forma de processo os juízos mais legítimos da mais incontestável autoridade.

A imprensa local, nacional e internacional, assim como naquilo que convencionou-se chamar de «Net», não fazem senão intensificar o caos ao repercutir sem intervalos todos esses aforismos dignos do Sr. Homais. Aqui, Flaubert se junta a La Bruyère: «É a profunda ignorância que inspira o tom dogmático».

Para evitar essas desordens, não percamos jamais de vista quais são os dois critérios insubstituíveis, necessários e suficientes para que um juízo seja justo. Esses dois critérios são, por um lado, a competência, que é fruto da ciência e da experiência concreta e, pelo outro, a autoridade, que decorre de um dever de estado legitimamente concedido. As outras qualidades pessoais, a ciência ou os anos de experiência em outras áreas diferentes, a autoridade no exercício de uma função distinta, jamais substituirão a competência e a autoridade requeridas para que se possa julgar justamente hic et nunc.

Um professor de letras, seja o quão eminente for, não pode se pronunciar em matéria de logaritmos. Ninguém contestaria a experiência provada de um velho professor que passou toda sua vida instruindo as crianças do campo; todavia, esse professor teria muito a aprender, senão quase tudo, de um professor universitário, talvez até mais jovem que ele, mas não obstante mais experimentado que ele em sua área, e vice-versa. Mesmo os antigos alunos das grandes Écoles se especializam de tal maneira num determinado ramo particular do saber humano, que eles chegam a negligenciar os outros. Não é por culpa deles, mas sim por culpa da nossa civilização. Não vivemos mais no século de Pico dela Mirandola, onde um homem podia adquirir toda a ciência de sua época. E menos que as ciências, as experiências (e portanto as prudências) não são intercambiáveis. Da mesma maneira as autoridades. Por isso que Deus quis estabelecer sua Igreja como uma sociedade em que cada um cumprisse uma parte do trabalho necessário ao bem do conjunto. São Paulo constata isso de uma vez por todas: «Habentes autem donationes secundum gratiam quæ data est nobis differentes…»[9]. Em todos os tempos, o homem-orquestra foi um personagem não somente ridículo, mas odioso.

A rainha da Espanha, Isabel a católica, pediu um dia que fosse composto um quadro representando um padre, uma mulher e um assassino. Como o artista estava estupefato, Sua Majestade aproveitou para dar uma lição. A composição deveria representar o padre no altar, a mulher no parto e o assassino na forca. No espírito de Isabel, o quadro deveria dar uma ideia do famoso princípio de ordem que está no fundamento de toda a justiça: cada um no seu lugar e um lugar para cada um. Um outro personagem, cuja importância histórica é indubitavelmente menor, mas que foi em seu tempo um homem de teatro justamente estimado pela sua franqueza, dizia a mesma coisa, em termos em que o pitoresco não deixava nada a desejar àquele de Isabel, mas que a boa educação nos impede de reproduzir. Nós nos lamentamos profundamente, porque em sua própria trivialidade, a proposta desse homem de outrora manifesta uma verdade eterna: se a paz é a tranquilidade da ordem, a desordem, ao contrário, chama a desordem, porque ela é fonte inesgotável de exasperação tanto na Igreja como em todos os demais lugares.

1.4 – Segunda consequência dessas distinções: situação precisa de uma dificuldade real

Seria necessário então desistir, pelo bem maior da unidade eclesial, de levantar alguma crítica séria ao Concílio Vaticano II? Nós entendemos aqui a palavra crítica no sentido do juízo que se exerce sobre os atos magisteriais da autoridade eclesiástica, a fim de verificar sua legitimidade; neste caso, tratar-se-ia de determinar se os ensinamentos do último Concílio podem constituir a regra a qual se deve conformar a crença de toda Igreja. E nós consideramos a hipótese de uma crítica séria, ou seja, garantida por duas condições indispensáveis que indicamos acima: o conhecimento suficiente do assunto a ser examinado e a autoridade necessária para impor seu próprio diagnóstico. Tal hipótese parece inverificável. Com efeito, pareceria ilusório querer manter ou restabelecer a ordem em uma sociedade adotando uma atitude incompatível com a tranquilidade dessa ordem: o benefício da paz social parece excluir o recurso a tal meio.

Ora, essa ilusão tomaria forma desde que um simples indivíduo recusasse toda autoridade a um ou outro dos ensinamentos do Concílio: a única crítica séria, porque autorizada, só pode advir do Soberano Pontífice, porque só ele possui a autoridade suficiente para dar a interpretação vinculativa dos textos de um concílio ecumênico. A um simples indivíduo, seja ele bispo, não restaria mais outra solução senão adotar «uma atitude positiva de estudo e de comunicação com a Sé apostólica, evitando qualquer polêmica»[10]. Pretender ir além seria correr o risco de um juízo, senão temerário, ao menos usurpado. É, ademais, o que bem compreenderam todos os responsáveis das diferentes comunidades Ecclesia Dei: sua crítica, quando ainda existe, pretende antes de tudo ser positiva.

1.5 – O ponto nevrálgico da crítica

Essa questão junta-se a outra, onde ela se cristaliza. No último dia 19 de dezembro [de 2009], o papa Bento XVI proclamou a heroicidade das virtudes de Pio XII e de João Paulo II. É a penúltima etapa no caminho da beatificação propriamente dita, e tal proclamação é importante. No caso particular de João Paulo II, essa importância é crucial, visto que, como bem sublinhou nosso confrade, o Padre Patrick de La Rocque[11], beatificar João Paulo II, neste caso, equivale a tomar posição em relação aos ensinamentos do Concílio Vaticano II, dos quais o papa polonês quis ser o autêntico e escrupuloso garante[12]. Durante mais de um quarto de século, seu pontificado não foi senão uma constante implementação da doutrina conciliar. «De maneira heroica, diz-nos, João Paulo II praticou, como Pio XII, as virtudes cristãs, aquelas mesmas que fazem os santos. […] A postura de tal beatificação aparece então pelo que ela é. Ela supera o destino de um homem, especialmente porque reiteradamente João Paulo II afirmou que as iniciativas de seu próprio pontificado não eram senão a ilustração viva do Concílio Vaticano II. Não há, portanto, dúvidas que, se tal beatificação vier a acontecer, ela não viria sem consequências para o futuro imediato da Igreja católica»[13]. De modo que, em suma, a crítica séria, e não somente positiva, do último Concílio, poderia encontrar sua expressão adequada e sintética na crítica da beatificação de João Paulo II.

Gostaríamos de mostrar aqui que essa crítica séria, e não somente positiva, mostra-se não somente possível, mas imensamente necessária por parte de todo fiel católico, e utilizaremos para isso três argumentos: um argumento de autoridade (§2), um argumento de razão provável por indução (§3), um argumento de razão certa, por demonstração perfeita (§4).

2. A crítica é possível? Argumento de autoridade

A Revelação divina ensina formalmente que a prudência sobrenatural infusa esclarecida pela fé pode e deve proceder nessa crítica.

A Sagrada Escritura ensina isso de maneira explícita na Epístola aos Gálatas, capítulo 1, versículos de 6 a 9. São Paulo previne os fiéis da igreja fundada por ele, dizendo-lhes que sua crença deve sempre manter-se conforme a lei divina: «Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um Evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema». São Paulo diz duas coisas. Primeiramente ele distingue entre «o que ele mesmo e os outros apóstolos ensinaram» e todos os demais ensinamentos posteriores. Em segundo lugar, ele esclarece que todos os demais ensinamentos posteriores não poderiam contradizer aquele dos apóstolos sem incorrer em anátema, ou seja, excomunhão. Ora, é claro que a totalidade do primeiro ensinamento dos apóstolos equivale à expressão substancial da lei divinamente revelada, enquanto que todos os demais ensinamentos posteriores equivalem à expressão da lei humana do magistério eclesiástico. É por isso que, se a autoridade do magistério eclesiástico que constitui uma lei humana, por definição dependente da lei divina, não estiver conforme essa lei divina, os atos que se conformassem a essa lei humana distorcida deveriam ser julgados como repreensíveis. E esse juízo é acessível a todo fiel católico: todo fiel católico tem a possibilidade de julgar os atos do magistério eclesiástico, para verificar se eles estão ou não em conformidade com a lei divina.

A Sagrada Escritura ensina ainda implicitamente no Evangelho de São Marcos, capítulo 16, versículos 15 e 16. Aquele que crer e for batizado será salvo, e aquele que não crer será condenado. O ato de fé aparece aqui como um ato ao qual se verá atribuir uma sanção moral; ora, tal ato se define como livre e meritório, e seu exercício é portanto dirigido pela prudência pessoal. Não basta obedecer; é preciso ser capaz de discernir se é preciso obedecer e quais os limites dessa obediência.

3. A crítica é possível? Argumento de razão provável tirado das lições de história da Igreja

É o argumento do contra factum non fit argumentum. A história da Igreja contém os pontificados dos papas Libério (351-366), Vigílio (537-555), Honório I (625-638) e João XXII (1316-1332). Os erros desses papas foram julgados como tais durante suas vidas pelos seus inferiores, e com mais forte razão após suas mortes pela autoridade[14].

4. A crítica é possível? Argumento de razão teológica por demonstração perfeita

4.1 – Enunciado do argumento

Julgar que devemos agir em direta conformidade com a lei divina, sem levar em conta a lei humana eclesiástica, é possível[15]; ora, criticar seriamente a beatificação de um papa, que levou a cabo os ensinamentos do Concílio Vaticano II, é julgar que devemos agir em direta conformidade com a lei divina, sem levar em conta a lei humana eclesiástica; portanto, a crítica séria da beatificação de João Paulo II e, através dela, dos atos do Concílio Vaticano II, mostra-se possível.

Essa argumentação repousa inteiramente sobre uma distinção, que é aquela que existe entre duas leis, a lei divina e a lei humana. Essa distinção aparece em cada uma das duas premissas do argumento. A boa compreensão deste argumento faz com que sejam necessários alguns esclarecimentos relacionados às vantagens que se pode tirar da distinção, primeiro na maior e depois na menor. Isso equivale a mostrar o sentido da distinção tanto no geral (§4.2) quanto no caso particular que nos ocupa, que é o da beatificação de João Paulo II (§4.3).

4.2 – Explicação da 1ª premissa: Lei divina e lei humana em geral

A – Natureza da lei

Segundo a definição nominal, mais comumente admitida e conforme as intuições elementares do bom senso, a lei é uma regra. «A lei é uma regra e medida dos atos, pela qual somos levados à ação ou dela impedidos. Pois lei vem de ligar, porque obriga a agir»[16], ou seja, a lei liga o agente a uma certa maneira de agir.

Decorre dessa definição nominal que a lei é a regra que indica se nossos atos são ou não conformes à moral. Com efeito, o ato que o homem é obrigado a cumprir ou não é o ato na medida em que ele comporta um valor moral; ora, a lei é a regra dos atos que o homem é obrigado a cumprir ou não cumprir; portanto, a lei é a regra dos atos na medida em que eles comportam um valor moral. A lei é a expressão inteligível da moralidade. Resta saber por que o homem é obrigado a cumprir ou não seu ato, ou seja, o motivo que constitui a moralidade de um ato humano. E tudo isso vai depender da perspectiva voluntarista ou intelectualista que se escolher, ou seja, de uma escolha em que a moralidade será concebida ou como a relação de conformidade entre o ato e uma decisão da vontade de Deus ou como a relação de conformidade entre o ato e um objetivo a buscar, tal como a sabedoria da inteligência divina indica ao homem. A lei é a expressão de uma relação que situa o ato em relação a uma decisão da vontade ou de um plano da inteligência?

B – As falsas definições

Vontade geral…

Uma primeira resposta é dada implicitamente através da atitude dos governantes das sociedades civis, que geralmente autorizam tudo e o contrário de tudo nos dias de hoje. Porque essa autorização basta por si mesma, na medida em que ela é a expressão da vontade geral. Os comportamentos humanos são considerados como moralmente bons na medida em que eles são fruto de uma atividade primordialmente livre e pessoal[17]; e o Estado intervém para dizer até onde se estende a boa moralidade dos atos humanos na medida em que pela lei indica quais são os justos limites do exercício da liberdade[18]. Enquanto tal, o divórcio e a prática do aborto correspondem, entre outras, a atitudes reconhecidas como moralmente boas, desde que elas sejam permitidas e sancionadas pela lei civil. Pode ser que seja o caso também, talvez em um futuro próximo, da questão da eutanásia: se no momento esta última prática permanece ainda em grande parte ilegal[19], é unicamente na medida em que a arbitrariedade dos nossos juristas ainda não reconheceu aí ainda uma reivindicação suficientemente explícita da liberdade moderna. Tal é o ponto de vista do que corresponderia a uma espécie de legalismo voluntarista, aquele das sociedades liberais ou socialistas de hoje: o imperativo categórico da vontade geral constitui a fonte última de todas as legitimações.

… ou imperativo divino?

Uma outra resposta poderia ser tomada de empréstimo dos dados religiosos e, desta vez, em nome do legislador divino viria a reprovar como imoral a liberdade de fazer qualquer coisa. Mas a divergência seria enganosa: porque ainda vai se encontrar aqui, no princípio da moral, o único capricho da vontade soberana e legisladora. Aqui, a diferença é que a vontade divina vem substituir a vontade geral. É a moral do livro sacrossanto porque desceu do Céu; mas é sempre uma moral essencialmente voluntarista. Moral da Torá, moral do Corão, moral lutero-calvinista da Bíblia abusivamente confiscada pelos pretensos luminares do libre examen.

A expressão literal da lei escrita não poderia admitir qualquer acomodação, porque essa expressão é a da vontade divina, e essa vontade basta a si mesma. É assim que, por exemplo, os Testemunhas de Jeová, sectários tardios desse duplo princípio do libre examen e da sola Scriptura, sempre mantiveram uma posição inflexível sobre um certo número de pontos bem conhecidos do grande público. Essa severidade lhes conduziria a recusar muito menos que a eutanásia ou o divórcio: conhecemos sua posição que decorre particularmente de um princípio doutrinal literalmente enunciado no capítulo XVII do livro do Levítico, versículos 10 a 16. Profanar o sangue comendo-o ou assimilá-lo por via intravenosa constitui uma atitude moralmente má e condenável, e essa imoralidade equivale em gravidade àquela que representa a idolatria ou a fornicação. A transfusão sanguínea é, portanto, logicamente proibida.

Vox Populi… vox Dei

Se dissermos que a vontade do povo é divina, sintetizamos as duas atitudes precedentes, especialmente porque elas decorrem do mesmo princípio. Essa atitude foi a dos Jacobinos de 1790, mas ela já estava arraigada no século XVIII, no coração dos déspotas esclarecidos da Europa central. Em Jean Jacques Rousseau (1712-1778), chega-se à noção explícita de «religião civil»… ou cívica, ou seja, ao que é já a religião laica avant la lettre[20].

A tentação do legalismo

Não obstante, é claro que não poderia ser crível contentar-se em justificar sua tomada de posição (e excomungar aqueles que não partilham dela) pelo que se assemelha a uma má tautologia, dizendo que o que é permitido ou proibido o é porque a lei permite ou proíbe. Por outro lado, e sobretudo, como observa Santo Tomás, a vontade não pode ser regra última, nem mesmo em Deus: sustentar tal ideia, segundo Santo Tomás, seria inclusive blasfêmia[21].

C – A definição da lei em Santo Tomás[22] supõe o primado da inteligência sobre a vontade

Com efeito, para Santo Tomás a lei se define como uma expressão inteligível dada pela razão de Deus à razão do homem: aliquid rationis. A lei é uma obra da razão prática que apreende e afirma à vontade a ordem real das coisas e a dependência das naturezas com respeito ao seus respectivos fins. Ela é obra da razão prática do chefe, que tem o encargo de conduzir ao fim. Portanto, a lei é regra porque é a expressão inteligível a qual recorre a autoridade para dizer o que é preciso fazer, mas «dizer o que é preciso fazer» não é primeiro e antes de tudo exprimir a decisão de uma vontade[23], é representar à inteligência a relação necessária que existe nas coisas, e que ela se encontra como a obra da sabedoria divina: é a relação que vincula as ações ao seu fim último, como todos os meios em relação ao seu fim. A lei regula a moralidade dos atos, precisamente porque ela apresenta à inteligência do homem a ordem da sabedoria divina. Se quisermos explicar a obrigação, é então primeiro na necessidade de uma ordem inteligível e racional, ela mesma expressão de uma finalidade, que é preciso estabelecer essa obrigação e não só na vontade absoluta de um legislador[24].

D – Primeiro corolário dessa definição: o sentido da legitimidade

Podemos entender a noção de legitimidade em dois sentidos: no sentido objetivo e no sentido eficiente. No sentido objetivo, a legitimidade refere-se à lei na medida em que ela exprime a ordem objetiva necessária, a realidade boa e verdadeira dos meios a se tomar para salvaguardar o bem comum. É a legitimidade moral. No sentido eficiente, a legitimidade refere-se à lei na medida em que ela é resultado da vontade do chefe que a promulga por meio de um ato de autoridade. É a legitimidade legal.

Na perspectiva tomista, os dois sentidos são distintos e separáveis, mas não importa como, porque o segundo sentido sempre supõe o primeiro. Pode-se encontrar a legitimidade moral sem a legitimidade legal: é uma maneira de agir, boa e verdadeira, necessária ao bem comum, mas que não é ainda respaldada pela autoridade. Mas não se pode encontrar a legitimidade legal sem a legitimidade moral: a autoridade deve ser exercida para promover os meios adequados ao bem comum, caso contrário ela não poderia ser exercida enquanto tal. Em suma, a legitimidade legal contém por definição a legitimidade moral. Se há uma diferença entre uma legitimidade puramente legal e uma legitimidade legal e moral (expressão que encontramos algumas vezes nos autores de teologia moral, como por exemplo no manual clássico do Padre Prümer), isso se entende no sentido em que a legitimidade puramente legal contém a legitimidade moral de maneira implícita, enquanto que a legitimidade legal e moral a contém de maneira explícita. Por exemplo, dir-se-ia que uma lei proibindo de pisar no gramado é uma lei puramente legal, enquanto que a lei proibindo o roubo é uma lei legal e moral. Mas a proibição de pisar na grama supõe implicitamente a proibição de causar dano ao bem comum e, nesse sentido, ela é uma lei implicitamente moral.

Em contrapartida, numa perspectiva suareziana e voluntarista, os dois sentidos são independentes: a legitimidade legal faz, enquanto tal, abstração da legitimidade moral. É o próprio dos regimes absolutistas de origem protestante na Europa moderna[25], como se observa no caso do despotismo esclarecido do século XVIII, onde Frederico da Prússia foi seu protótipo.

E – Segundo corolário dessa definição: a hierarquia das leis

Para explicar mais o primeiro corolário, lembremos que toda lei que vem de um chefe humano deve ser resolvida na razão prática de Deus, ou seja, na sabedoria Daquele que é o Chefe e Senhor de todo o universo criado[26]. A atividade do legislador humano que define a lei consiste em explicitar mais ou menos os princípios gerais já estabelecidos pela lei divina, dando da ordenação que esses princípios expressam de maneira muito geral, uma expressão mais precisa que leve em conta as diferentes circunstâncias de tempo ou de lugar. Essa expressão é mais precisa no sentido em que ela indica como aplicar os mesmos princípios imutáveis da lei divina em um contexto novo, em meio à circunstâncias variáveis.

Entre as diferentes leis que publica a autoridade civil, umas apenas reafirmam o que já está contido explicitamente na lei divina natural, e sua obrigação simplesmente soma-se à do Decálogo (por exemplo as leis que proíbem o homicídio voluntário, a difamação ou o roubo); as outras acrescentam precisões suplementares que não são explícitas na lei natural e sua obrigação compete inteiramente a um direito puramente humano (por exemplo, as leis que regulam o tráfego rodoviário).

De maneira comparável à que se passa na ordem natural, existe na ordem sobrenatural uma expressão absolutamente universal, dada no estado de simples princípios gerais, que contém em estado implícito tudo o que a atividade de um legislador humano pode explicitar. Essa expressão absolutamente universal é a do depósito da fé, tal como ela se encontra sintetizada no Símbolo dos apóstolos, assim como nos ensinamentos infalíveis do magistério eclesiástico, tal como ele se exerce quando quer definir as verdades de fé divinamente reveladas. Quando legisla, a Igreja simplesmente explicita essa regra geral da fé e da moral, mas ela faz isso de duas maneiras diferentes.

Com efeito, o poder legislativo da Igreja tem por objeto simultaneamente as matérias de fé e moral e as matérias disciplinares. Nas primeiras, a obrigação da lei eclesiástica simplesmente soma-se à do depósito da fé divinamente revelada, visto que a lei eclesiástica simplesmente reafirma preceitos que já estão implicitamente contidos no depósito da fé (por exemplo, a lei da indissolubilidade do sacramento do matrimônio), enquanto que nas matérias disciplinares a obrigação compete inteiramente ao direito eclesiástico, que é um direito puramente humano, visto que a lei eclesiástica acrescenta precisões suplementares que não estão contidas no depósito da fé (por exemplo, a lei que obriga os católicos a assistirem à Missa no domingo)[27].

A lei encontra-se portanto em situações diferentes, dependendo de se ela se exprime nos princípios absolutamente universais e necessários da lei divina, natural ou divinamente revelada ou dependendo de se ela se exprime nas explicitações que ela dá da lei humana, civil ou eclesiástica. E nessa segunda situação, há ainda uma diferença a se fazer entre as explicitações que simplesmente reafirmam a lei divina e aquelas que lhe acrescentam precisões suplementares. Mas nesses dois casos, a lei humana é por definição uma regra regulada, ou seja, uma regra que depende de outra, em sua mesma ordem de regra, visto que a legislação humana, civil ou eclesiástica, não pode contradizer a lei divina. A razão prática do legislador humano é medida pela legitimidade moral de base, ou seja, pela lei natural ou pela revelação. O legislador humano não pode dar força de lei a qualquer coisa; ele só pode dar força de lei às conclusões que decorrem dos seus princípios. Toda atividade legisladora do homem é medida pela atividade legisladora de Deus.

F – O sentido da distinção utilizada na primeira premissa do argumento

Na Suma Teológica, Ia-IIa, questão 71, artigo 6, Santo Tomás dá a definição do pecado. Retomando a definição de Santo Agostinho, ele diz que o pecado é «omne dictum vel factum vel concupitum contra legem aeternam». O pecado é tudo o que se pode dizer, fazer ou desejar contra a lei eterna.

A 3ª das objeções que precedem o corpus é útil para melhor compreendermos essa ideia da hierarquia das leis que acabamos de evocar. O objetante diz que a definição não é boa. Com efeito, o que define primeiro e antes de tudo o pecado é que ele é uma ação que se desvia não da lei, mas do fim. Porquanto o pecado é um mal, e o mal, no plano das ações, consiste em faltar ao fim. É por isso que a definição deveria mencionar a aversão em relação ao fim e não em relação à lei. Santo Tomás teria sido pego, portanto, em flagrante delito de legalismo suareziano…

Santo Tomás responde esclarecendo que a definição deve ser entendida com todo o rigor dos termos que a compõem. A definição refere-se não à lei enquanto tal, mas precisamente à lei eterna. O pecado não é precisamente o que vai só contra a lei, ou seja, toda lei, divina ou humana, natural ou civil, ou eclesiástica. O pecado é precisamente o que vai contra esta lei que é a lei divina eterna. Uma ação que contradiz a lei civil ou eclesiástica, ou mesmo a natural, é um pecado se e somente se, através da lei civil, eclesiástica ou natural ela contradisser a lei divina eterna.

Dito de outra maneira, o pecado consiste em renegar os princípios absolutamente primeiros, sejam em si mesmos, sejam nas conclusões que dependem necessariamente deles, e na medida em que essas conclusões lhes são dependentes. Por quê? Porque a lei divina eterna é a única que indica não somente os meios necessários, mas também o fim que lhes tornam necessários. Todas as demais leis indicam somente os meios, mais ou menos necessários. Quando se desvia da lei eterna, desvia-se por esse mesmo fato do fim. É por isso que toda desordem e todo pecado está suposto na recusa da lei divina eterna. E reciprocamente, todo pecado supõe a recusa da lei divina eterna. A recusa de uma outra lei além da lei divina eterna é pecado porque é antes de tudo a recusa da lei divina eterna.

Vemos imediatamente a consequência: longe de poder aspirar o título de lei, uma iniciativa humana (civil ou eclesiástica) que estivesse em contradição com a lei divina eterna constituiria não somente um pecado (entre outros), mas ainda fonte e ocasião de numerosos pecados, um escândalo. É o caso da legislação que autoriza o aborto. É o caso de toda iniciativa que tivesse por fim equiparar a verdade e o erro, o bem e o mal, sob pretexto de liberdade. É o caso de toda iniciativa que, de uma maneira ou de outra, atentasse contra a fé e a verdade revelada.

G – O sentido da primeira premissa do argumento

Regra remota e regra próxima

Um ato humano é moralmente bom se ele é conforme sua regra. Mas esta não se reduz à lei, porque ela tem dois aspectos: há uma distinção a ser feita entre uma regra remota e uma regra próxima. A lei é somente uma regra remota. A regra próxima é a consciência daquele que age, ou seja, o juízo moral que ele deve exercer sobre sua ação, nas circunstâncias concretas em que ele age, verificando que sua ação está de fato conforme à lei[28]. Diferentemente dos seres desprovidos de razão, o homem é, de fato, dotado de liberdade, pois ele é dotado de inteligência. Normalmente, ele deve aplicar a lei verificando ele mesmo se as ações que ele se propõe cumprir estão ordenadas ao seu fim último e, não obstante, se estão conforme a lei que exprime essa ordenação. Esse discernimento é obra da virtude da prudência. Ele pertence primeiro ao homem enquanto tal. Todo homem pode e deve exercer esse discernimento nos limites que a Providência lhe concedeu. Aquele que age racionalmente pode e deve julgar os atos que ele se propõe realizar: primeiro seus próprios atos, e depois os atos de todos aqueles de quem está encarregado. Na Igreja, haverá o juízo do simples fiel em relação aos seus próprios atos pessoais, haverá o juízo do chefe de família católico em relação aos atos de todos os seus, haverá o juízo do bispo em relação às almas que lhe são confiadas e haverá o juízo do papa em relação a todos os fiéis da Igreja. Pretender o contrário seria destruir a noção mesma de Igreja e sociedade para substituí-la por um teatro de marionetes. Entendido num sentido não mais retórico[29], mas científico, a noção de «obediência cega» não somente é contraditória, mas também incompatível com a noção católica da moral, seja esta noção teológica ou filosófica.

As diversas formas de prudência

O juízo da consciência, que corresponde ao exercício da virtude da prudência, encontra-se ele próprio em situações diferentes, conforme ele se exerce na Igreja por um simples fiel, por aquele que possui uma certa parte de autoridade hierárquica (um padre ou um bispo) ou por aquele que é investido da autoridade suprema (o papa). A prudência dos simples indivíduos tem por objeto receber a direção da autoridade à maneira de um sujeito inteligente e livre[30], ou seja, usando o discernimento para reconhecer enquanto tais as prescrições da autoridade humana legítima. A prudência da autoridade tem por objeto dirigir os súditos e estabelecer por isso a lei eclesiástica, em vista do bem da Igreja e em conformidade com o depósito de verdades de fé e moral divinamente reveladas; a prudência do soberano pontífice, correspondente ao exercício da autoridade suprema, tem por objeto dirigir todos os membros da Igreja, simples fiéis, padres e bispos, estabelecendo a lei eclesiástica universal em vista do bem comum de toda a Igreja.

Lei e prudência

Enfim, mesmo se a lei não é a prudência, há sempre uma relação entre as duas. É a relação que existe entre uma causa e seu efeito, mas é diferente, conforme se considera de um lado a lei divina ou a lei humana, e do outro a prudência dos súditos ou a do supremo chefe. A prudência do chefe tem por efeito determinar a lei humana, mas é a lei divina que condiciona a prudência do chefe. A prudência do chefe determina a lei humana, sincronizando-se assim com a lei divina. Com efeito, a prudência dos súditos é efeito da lei: efeito que decorre imediatamente da lei humana e indiretamente da lei divina. A lei divina condiciona a prudência dos súditos por intermédio da lei humana que é determina pelo chefe. Toda prudência, tanto a do chefe quanto a dos súditos, deve pois depender da lei divina como sua regra absoluta. A prudência dos súditos depende ademais da lei humana, na medida em que esta é a intermediária por meio da qual a prudência do chefe lhes dá um conhecimento mais explícito ou mais preciso da lei divina.

Função crítica da prudência

Conforme assinalamos anteriormente, se a prudência dos súditos recebe a direção da autoridade através da expressão da lei humana, essa recepção é aquela que se produz num sujeito inteligente e livre, ou seja, naquele que usa de discernimento para reconhecer através das prescrições da lei humana a explicitação circunstanciada das prescrições da lei divina. A prudência do súdito deve julgar se o ato humano que a lei humana lhe ordena cumprir é conforme a lei divina, porque, enquanto racional e livre, o sujeito deve reconhecer através da lei humana a explicitação autorizada da lei divina. Se ele se dá conta do contrário e reconhece, por exemplo, que as novas prescrições atuais da autoridade humana contradizem a lei divina, o súdito deve permanecer nas prescrições anteriores da autoridade humana, assim como elas explicitavam suficientemente até aqui a lei divina. Neste caso, o súdito não se autoproclama autoridade acima da autoridade; ele simplesmente constata a inobservância atual de uma autoridade, que nega a si mesma abandonando os primeiros princípios dos quais depende toda sua obra legisladora. E é nesses primeiros princípios que o sujeito deve permanecer para que ele possa se manter na ordem, mantendo-se assim na dependência daquilo que é a raiz de toda autoridade.

… inclusive na Igreja!

Essa função crítica da prudência permanece necessária, inclusive na sociedade natural que é a Igreja. Porque a ordem da graça não poderia negar a ordem da natureza. Portanto, não se poderia objetar, para recusar aos católicos o exercício dessa função crítica no que diz respeito ao magistério eclesiástico, que «o súdito que julga o magistério em nome da Tradição é, definitivamente, uma consciência individual que não deixa de ter uma confiança de si em algo temerária a ponto de afirmar que ela tem a evidência de uma descontinuidade grave no ensinamento do magistério»[31]. Aqui, na crítica séria de que se questiona, a contradição não acontece entre a consciência pessoal de um simples fiel e os ensinamentos atuais do magistério, que dá a expressão da lei humana eclesiástica.

É verdade que para um protestante o critério da doutrina é sua própria inteligência pessoal, seu próprio juízo e que ele se opõe ao ensinamento atual do magistério. Mas para um católico é diferente: não se trata de legislar em lugar do magistério, mas de verificar se a lei eclesiástica permanece em continuidade com a lei divina, de assegurar se ela não contradiz os dados que já foram suficientemente explicitados, em conformidade com essa lei divina, pelo magistério anterior. Não se compara o juízo pessoal do fiel e o juízo do magistério de uma mesma época; compara-se o juízo do magistério de hoje e o juízo do magistério de ontem. A contradição que se pode eventualmente constatar verifica-se entre a lei divina tal como ela se exprime por meio do magistério tradicional de ontem e a lei eclesiástica tal como ela se exprime por meio do magistério atual. É o magistério tradicional de ontem que julga o magistério atual, porque é a lei divina que deve julgar a lei eclesiástica.

É por isso que renegar uma lei humana eclesiástica a qual ela mesma renega a lei divina não somente não é pecado como mostra-se inclusive justo e necessário. Essa negação é a expressão da virtude da prudência, ou seja, de uma consciência que busca conformar seus atos à lei de Deus, e que busca fazê-lo contra todas as probabilidades, inclusive se isso significar ir contra uma autoridade humana negligente. Estamos no cerne do nosso assunto, e aqui é útil regressarmos, após uma digressão talvez longa porém necessária, à primeiríssima premissa do nosso argumento: «Julgar que se deve agir em conformidade direta com a lei divina, sem levar em conta a lei humana eclesiástica, é possível». Isso é possível quando a iniciativa do legislador humano negligencia suas próprias raízes renegando a lei eterna de Deus, e com ela o princípio primeiro de toda legislação e de toda moral; isso é possível porque o homem é um ser dotado de inteligência e livre, responsável pelos seus atos e obrigado a verificar a moralidade da sua conduta, em conformidade com a lei de Deus. Em seu belo livro sobre Sula, Jérôme Carcopino fez notar como Cornelius Dolabella, um dos dois cônsules impostos à escolha do povo pelo ditador «era o tipo de oficial disciplinado ao ponto da inércia»[32]. Tais mediocridades sempre apresentaram a vantagem de preparar à tirania instrumentos dóceis; mas elas são completamente contrárias às exigências mais profundas da natureza humana, que são as da virtude da prudência.

4.3 – Explicação da 2ª premissa

A beatificação de João Paulo II e o Concílio

Dizemos aqui que «criticar seriamente a beatificação de um papa, que levou a cabo os ensinamentos do Concílio Vaticano II, é julgar que devemos agir em direta conformidade com a lei divina, sem levar em conta a lei humana eclesiástica». Esse juízo está ao alcance de todos e é, podemos dizer, segundo uma certa semelhança, o discernimento do senso comum na ordem sobrenatural. Ele consiste em raciocinar a posteriori, partindo de um efeito para chegar à sua causa. É o discernimento que se funda sobre um sinal. Esse sinal é o efeito causado pela essência do ato conforme à sua regra. O ato que é exigido pela lei humana eclesiástica, se ele é conforme como ele deve ser à lei divina, deve ter por efeito necessário ou por propriedade apresentar quatro notas: a unidade, a santidade, a apostolicidade e a catolicidade. Essas são as notas que deve assumir todo ato realizado na Igreja, sob a direção da autoridade humana legítima, ela mesma regulada pela autoridade divina. Elas se remetem na realidade a duas, porque a catolicidade é unidade no espaço e a apostolicidade é unidade no tempo. Assim, o discernimento consiste em verificar se o ato exigido pela autoridade eclesiástica do magistério apresenta essas notas de unidade e santidade. Se, em vez de apresentá-las, ela as contradiz, concluímos daí que esse ato aparentemente exigido pela lei humana eclesiástica não é conforme a lei divina e que não é prudente realizá-lo.

Esta conclusão repousa sobre um sinal indubitável, porque o ponto de partida do discernimento é a observação dos fatos. O raciocínio que chega a essa conclusão é um raciocínio de ordem prática, estabelecido pela prudência e não pela ciência. Para compreender todo seu alcance, é preciso ter presente no espírito algumas noções de base que começaremos recordar (§ 4.3.1) antes de desenvolver o argumento propriamente dito (§ 4.3.2).

4.3.1 – Alguns lembretes: canonização e beatificação

A canonização é o ato de autoridade pelo qual o vigário de Cristo, julgando em última instância e sustentando uma sentença definitiva, inscreve no catálogo dos santos um servo de Deus anteriormente beatificado. Esse ato de autoridade equivale a um triplo juízo. Primeiro juízo: o papa afirma que o servo de Deus anteriormente beatificado praticou durante sua vida as virtudes sobrenaturais em estado heroico e que, por conseguinte, ele mereceu e obteve a glória do céu. Segundo juízo: o papa afirma que essas virtudes heroicas, tal como o servo de Deus anteriormente beatificado as exerceu, constitui para todos os fiéis da Igreja uma norma tão certa, que aqueles que fizerem o mesmo têm eles mesmos assegurada a consecução da salvação eterna. Terceiro juízo: o papa afirma que todo fiel está obrigado a dar sua adesão ao primeiro e segundo juízos, e de professar essa adesão tomando parte no culto público que a Igreja a partir de então prestará ao santo canonizado, para reconhecer oficialmente sua glorificação e a heroicidade de sua virtude. Destes três juízos, o primeiro impõe com autoridade a adesão dos fiéis de toda a Igreja o fato da glorificação do santo canonizado, o segundo impõe com autoridade aos fiéis de toda a Igreja o exemplo de suas virtudes heroicas, e o terceiro é um preceito, que obriga os fiéis de toda a Igreja a prestar ao santo canonizado o culto que lhe é devido em razão de sua glorificação e de suas virtudes heroicas.

A canonização não é a beatificação[33], mas a diferença intervém somente no nível do terceiro juízo, que supõe os dois primeiros. A beatificação é um ato pelo qual o soberano pontífice concede a permissão para prestar culto ao beatificado em certas partes da Igreja até que o bem-aventurado seja canonizado; esse ato não é precedido de um outro que lhe prepara; ele mesmo prepara um outro e seu valor é temporário. Por outro lado, a canonização é um ato definitivo que prescreve à toda a Igreja prestar um culto ao canonizado; este ato deve ser precedido pelo ato de beatificação que o prepara; ele é último e irreformável. A diferença essencial consiste em que a beatificação é uma permissão temporária e restrita a certos lugares, enquanto que a canonização é um preceito definitivo estendido à toda a Igreja. O fato de que o culto seja permitido ou prescrito constitui uma diferença acidental. Na maior parte das vezes, o culto do beatificado é permitido, enquanto que o culto do canonizado é prescrito; todavia, em vista de uma canonização proximamente esperada ou por qualquer outra razão que ele assim julgar, o papa pode prescrever o culto do beatificado. O fato de que o culto seja limitado a certos lugares ou estendido à toda a Igreja constitui também uma diferença acidental: na maioria das vezes, a beatificação é concedida a uma parte da Igreja; mas é possível que essa permissão seja estendida à Igreja universal, sem que por isso ela adquira o valor de uma prescrição definitiva. A diferença propriamente dita, que faz a distinção essencial entre uma beatificação e uma canonização, é o caráter definitivo e irreformável que marca a canonização.

O fato é que a beatificação já abre o caminho para o juízo definitivo da canonização. Encontramos nela as duas afirmações essenciais que dizem respeito à glorificação do bem-aventurado e o valor exemplar, em escala geral na Igreja, de suas virtudes heroicas. É desse último ponto de vista que devemos colocar a questão, na eventualidade da beatificação de João Paulo II: «As marcas deixadas por esse papa que quis fazer de seu pontificado uma ilustração viva do Concílio Vaticano II são aquelas que a Igreja de hoje e de amanhã terá de seguir para sair vitoriosa e maior da crise que ela atravessa?»[34]

4.3.2 – Olhar crítico sobre uma beatificação

Dito de outra maneira, os atos dos fiéis católicos que, para se conformar às ordens da autoridade eclesiástica, tomassem como exemplo as diferentes atitudes seguidas por João Paulo II, estariam investidos das duas características que devem necessariamente acompanhar todo ato realizado por uma obediência católica: a unidade e a santidade?

A nós parece que não.

a – Qual unidade?

A unidade católica é, com efeito, a unidade na mesma e única religião divinamente revelada por Jesus Cristo, a religião católica, a única professada pela Santa Igreja romana apostólica. É a unidade de uma mesma fé teologal e sobrenatural, e de um mesmo culto, de um mesmo Credo e de uma mesma Missa. Ora, a unidade que João Paulo II quis dar como exemplo por todas suas atitudes é uma unidade ecumênica, ou seja, a unidade natural do gênero humano, compatível com a diversidade das expressões religiosas. Isso é demonstrado por todas as reuniões ecumênicas inter-religiosas convocadas pelo papa polonês, reuniões cuja importância era vital aos seus olhos. «Cada um», diz ele, «aceita o outro como é, e o respeita como irmão e irmã na humanidade comum e em suas convicções pessoais. As diferenças que nos separam continuam. E é esse o ponto essencial e o sentido deste encontro e das orações que virão em seguida: mostrar a todos que só a aceitação mútua do outro e no conseguinte respeito mútuo, tornado mais profundo pelo amor, é que reside o segredo de uma humanidade finalmente reconciliada»[35].

Quando João Paulo II eleva as diferentes religiões, cristãs ou não, à posição de meios de salvação temporal para a humanidade em busca de paz, não é em primeiro lugar pelo que elas têm em comum. Tendo sempre denunciado a tentação do sincretismo, ele sempre se recusou a considerar as religiões apenas pelo seu menor denominador comum. É em primeiro lugar em razão de sua pluralidade, do que por suas diferenças, que as religiões são chamadas segundo ele a fazer surgir uma nova civilização de amor. Portanto, é sobre a própria pluralidade religiosa, sobre cada religião tomada em sua identidade própria, que João Paulo II acreditou ser possível se apoiar para que se realize a unidade da família humana inteira: «As diferenças culturais, religiosas e étnicas presentes em um país deveriam ser preciosamente preservadas como dons que ajudam as pessoas a apreciar essa unidade na diversidade da família humana que Deus concedeu»[36]. A unidade dada como exemplo pelo predecessor de Bento XVI não é portanto a unidade católica, nota da única religião verdadeira. É por isso que esse exemplo não poderia obrigar no foro da consciência os fiéis da santa Igreja católica.

b – Qual santidade?

Em seu Tratado sobre as beatificações e canonizações[37], o papa Bento XIV explica quais são os sinais requeridos para estabelecer se um servo de Deus praticou a caridade para com o próximo de maneira heroica. A caridade heroica supõe primeiro a caridade comum e esta se exprime por meio das obras de misericórdia corporal e espiritual. Entre os sinais da misericórdia espiritual, notam-se os seguintes: corrigir aqueles que estão no erro e trazer-lhes de volta ao caminho da salvação; cuidar da salvação das almas, e desejar a essas almas os meios de salvação que nós desejamos primeiro a nós mesmos. A caridade heroica consiste em realizar as obras prontamente, facilmente e sem resistência, com alegria; não de tempos em tempos, mas frequentemente, e mesmo se as circunstâncias tornarem difícil a realização dessas obras.

Ora, a pastoral de João Paulo II não foi inspirada por esse zelo missionário autêntico. Todos os esforços que ele pôde desenvolver em favor do diálogo ecumênico e inter-religioso não foram a expressão de uma verdadeira caridade aplicada às obras de misericórdia espiritual. Essa atitude, vista por qualquer ângulo, foi muito diferente do comportamento adotado por Nosso Senhor Jesus Cristo: «Embora tenha sido bom para os desviados e pecadores, Nosso Senhor não respeitou as convicções errôneas deles, por mais sinceras que parecessem»[38]. Longe de lembrar aos seus consortes ecumênicos, com toda a delicadeza requerida, a necessidade da fé católica para serem salvos[39], João Paulo II frequentemente escondeu a mensagem da Igreja, ou inclusive a deturpou[40]. Sua pretensa caridade não foi, portanto, uma caridade da verdade. Por esse fato mesmo, ela se opõe até mesmo à caridade comum. E com mais forte razão ela se opõe à caridade heroica, absolutamente necessária a um bem-aventurado.

c – Conclusão

Estamos, portanto, obrigados a nos posicionar em favor da lei divina, considerando a falsa unidade ecumênica e inter-religiosa e a falsa caridade filantrópica pelo que elas são: atitudes puramente humanas, inclusive naturalistas, que não poderiam ser nem a expressão de uma virtude verdadeiramente cristã e nem indicativo de santidade. Essa constatação se impõe a nós, mesmo que a lei humana das autoridades eclesiásticas pretendam o contrário, dando João Paulo II como exemplo de virtude heroica ao conjunto dos fiéis católicos. Por esse próprio fato, nós fazemos a crítica séria da beatificação de um papa que colocou em prática os ensinamentos do Concílio Vaticano II.

Assim se verifica a segunda premissa do nosso argumento.

5. Epílogo

A crítica dos ensinamentos conciliares é então possível e necessária. Aqui, o juízo não é nem temerário e nem usurpado. Corresponde a toda alma de boa vontade, no contexto que permanece o de um estado de necessidade. Longe de proibir tal crítica, o interesse superior da unidade eclesial, ao contrário, pede-a em primeiro lugar. Porquanto esse interesse é o da fé e da salvação das almas.

O princípio determinante da unidade da Igreja não é unicamente, e nem mesmo primeiro e antes de tudo, a autoridade eclesiástica (o papa com os bispos). A unidade da Igreja se define precisamente não em função da autoridade, mas em função da ordem que a autoridade deve fazer reinar[41]. Na Igreja, essa ordem corresponde ao triplo vínculo de unidade social na verdadeira fé e no verdadeiro culto. Santo Tomás de Aquino afirma precisamente que os ministros da Igreja não podem usar de seu poder para questionar a boa ordem que define a paz eclesial: «Não pertence aos ministros da Igreja publicar novos artigos de fé e nem de suprimir aqueles que foram publicados, e não lhes diz respeito publicar novos sacramentos e nem de suprimir aqueles que já foram instituídos»[42].

Esse olhar crítico corresponde a todo católico, preocupado em permanecer fiel às promessas de seu batismo; desprovido de toda polêmica vazia, certamente, mas também de todo irenismo, ele toma hoje a forma de um testemunho público em favor da fé católica, questionada pelas ambiguidades do último Concílio. Esse testemunho cumpre à sua maneira o preceito do Apóstolo São Paulo: «Argue, obsecra, increpa in omni patientia et doctrina»[43]. E, por agora, é a melhor contribuição que podemos trazer à Santa Sé, enquanto filhos que amam a Igreja, a fim de salvaguardar a paz de Cristo.

Notas

  1. Eugène Delacroix, «Des critiques en matière d’art», artigo publicado em maio de 1829 na Revue de Paris e reproduzido em Écrits sur l’art, editado por François-Marie Deyroll e Christophe Denissel, Librairie Séguier, 1988, p. 13.
  2. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa-IIa, q. 60, a. 3.
  3. Id, Ibid., IIa-IIa, q. 60, a. 6.
  4. Seria o caso, por exemplo, de um professor de matemática que criticasse o curso de um professor de filosofia. O juízo de um professor de matemática só seria válido (e não temerário) se o professor de matemática fosse igualmente filósofo. Mas por um lado essa situação é rara, e pelo outro, mesmo nessa situação, o juízo não estaria isento do risco de usurpação.
  5. Julga-se injustamente por falta de competência.
  6. Seria, por exemplo, o caso de um filósofo que criticasse o curso de um professor de filosofia. O único juízo lícito, porque não usurpado na matéria, caberia àquele que tivesse autoridade sobre o professor de filosofia, como por exemplo o diretor do estabelecimento em que o professor estivesse encarregado de ensinar filosofia. E o juízo do filósofo seria lícito, porque não usurpado, em dois casos: se o filósofo tivesse também autoridade sobre o professor, sendo, por exemplo, o diretor do estabelecimento, ou se a pessoa possuidora da autoridade sobre o professor, por exemplo o diretor do estabelecimento, pedisse conselhos a esse filósofo.
  7. Atribui-se injustamente a autoridade para julgar.
  8. Julga-se injustamente for falta ou por usurpação de autoridade.
  9. Rom 12, 6.
  10. «Protocolo de acordo de 5 de maio de 1988 entre Sua Eminência o Cardeal Ratzinger e Sua Excelência Monsenhor Lefebvre», parte I (Declaração doutrinal), n.º 3 Fideliter, número extra, 29-30 de junho de 1988.
  11. Padre Patrick de La Rocque, «Em breve bem-aventurado? Dossiê sobre os projetos de beatificação de Pio XII e João Paulo II», publicado no site oficial do Distrito da França da Fraternidade São Pio X, La Porte Latine, sábado, 6 de março de 2020.
  12. Ademais, Bento XVI afirmou desde sua eleição ao Soberano pontificado, durante uma entrevista dada à televisão polonesa em 16 de outubro de 2005: «Nós sabemos que o papa [João Paulo II] era o homem do Concílio, que ele tinha assimilado interiormente o espírito e a letra do Concílio e, por esses textos, ele nos fez compreender verdadeiramente o que queria e o que não queria o Concílio». (Bento XVI, «Entrevista à televisão polonesa, 16 de outubro de 2005» em DC n.º 2346, p. 1051).
  13. Padre Patrick de La Rocque, Ibidem.
  14. Encontra-se a exposição detalhada desses episódios históricos no artigo «Une crise sans précédents?» em Vu de haut n.º 14 (outono de 2008), p. 78-95. Quanto ao Papa Honório, um de seus sucessores, o Papa São Leão II (682-683) ratificou a condenação proferida durante a 13ª sessão do IIIº Concílio de Constantinopla, em 681: «Honório não se esforçou para fazer resplandecer esta Igreja apostólica pelo ensino da tradição apostólica, senão que permitiu, por uma execrável traição, que esta Igreja sem mácula fosse contaminada» (Mansi, 11/733). Dois séculos mais tarde, o Papa Adriano II (867-872) lembrará ainda o ocorrido: «Se o anátema foi pronunciado contra Honório pelos orientais após sua morte, é preciso saber que a razão é que Honório foi acusado de heresia, única causa pela qual é lícito aos inferiores resistir a seus superiores e de repelir seus sentimentos perversos» (Mansi, 16/126).
  15. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIa, q. 57, a. 6, corpus e ad 3; IIa-IIa, q. 51, a. 4, corpus e ad 3.
  16. Id., Ibid., q. 90, a. 1, corpus.
  17. Cf. a encíclica Libertas do Papa Leão XIII, 20 de junho de 1888, que denuncia os fundamentos desse erro do liberalismo. Há uma diferença entre a vontade que é tendência necessária para o fim que ela não escolhe e a vontade de deliberação ou racional que é a liberdade em relação aos meios que conduzem ao fim. A vontade é tendência antes de ser liberdade, ela é em primeiro lugar determinada antes de se determinar. A vontade é relativa primeiro à ordem dos fins e depois à ordem dos meios. Para o homem moderno, ao contrário, só há uma ordem que é primeira e absoluta e é a ordem dos meios. A vontade é essencialmente liberdade.
  18. «A liberdade política é o direito de fazer tudo o que as leis permitem.» (Montesquieu, De l’esprit des lois, livro XI, cap. 3).
  19. Nós dizemos «em grande parte» porque cada vez mais esse estado de ilegalidade tende a minguar. Desde 2001 na Holanda e 2002 na Bélgica, a eutanásia feita sob certas condições não constitui mais uma infração penal; na Suíça, chegou-se a distinguir entre os vários tipos de eutanásia, como entre crime e terapia. A diferença se deveria a certas condições específicas; e é a vontade do legislador que está encarregada de avaliá-las. Assim, dever-se-ia considerar que não haveria mais crime no caso em que se propusesse abreviar os sofrimentos considerados insuportáveis e irremediáveis. Não estamos proibidos de pensar que tal equívoco constitui a primeira etapa de um processo que culminará, cedo ou tarde, na legalização pura e simples. Cf. o artigo Euthanasie ou meurtre? publicado no jornal Le Nouvelliste de 6 de julho de 2001, p. 5.
  20. Ver o livro de Maurice Barbier, Religion et politique dans la pensée moderne, Presses universitaires de Nancy, 1987, p. 111-125.
  21. Santo Tomás de Aquino, De veritate, q. 23, a. 6: «A vontade não tem razão de regra primeira, mas de regra regulada: com efeito, ela é dirigida pela razão e a inteligência, não somente em nós, mas também em Deus; ainda que em nós a inteligência seja realmente distinta da vontade, e por conseguinte a vontade não é idêntica à retidão da vontade; Em Deus, porém, a vontade e a inteligência são realmente idênticas, e por causa disso a retidão da vontade e a vontade são idênticas. É por isso que o primeiro princípio do qual depende a noção de toda justiça é a sabedoria do intelecto divino, que estabeleceu as coisas na proporção devida, umas em relação às outras e cada uma relativamente à sua causa; e é nessa proporção que consiste a noção de justiça criada. Mas dizer que a justiça depende somente da vontade é dizer que a vontade divina não procede seguindo a ordem da sabedoria, o que é uma blasfêmia.»
  22. Enunciado na Suma Teológica, Ia-IIa, q. 90 a 97. As considerações que se seguem são tiradas dali, assim como do livro de Michel Bastit, Naissance de la loi moderne – La pensée de la loi, de saint Thomas à Suarez, P.U.F., 1990.
  23. É sobre este ponto essencial, uma vez que rege toda a definição da lei, que Santo Tomás não é mais seguido pelos modernos. Suarez em particular dirá: «O próprio da lei é dar uma ordinatio» e estabelecerá assim uma definição da lei que deixa completamente de lado a relação intrínseca da lei a um fim. Para Santo Tomás, a lei exprime uma finalidade, no sentido em que ordinatio equivale a uma ordenação e uma conexão inteligível a um fim; enquanto que para Suarez ela exprime uma eficiência, no sentido em que ordinatio equivale a uma ordem e um mandamento; é por isso que os modernos fazem a lei depender de uma decisão voluntária: «Ordinatio legis prout est in superiore ordinante vel loquente semper est aliquid spectans ad voluntatem» (Suarez). A lei é lei e obriga porque ela é a decisão e a vontade do legislador. A obediência cega (sobre a qual repousa em grande parte a ascética dos autores espirituais que se situam – conscientemente ou não – na obediência suareziana) decorre logicamente dessa premissa. O inconfundível excesso que permanece mais ou menos latente entre eles não deve prejudicar a boa influência que eles podem exercer, aliás; pede-se simplesmente o discernimento em certos pontos. Pois estritamente falando, a obediência não é jamais cega; ela deve sempre ser esclarecida, como toda virtude moral, pela prudência.
  24. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIa,q. 90, a. 1, corpus. A lei no sentido nominalista e positivista de hoje é frequentemente, na verdade, não uma verdadeira lei (ou seja, um princípio inteligível universal que pede uma determinação suplementar requerida pela prudência pessoal de cada um, em função das circunstâncias), mas uma decisão voluntarista já circunstanciada, ou seja, extremamente determinada pela relação com a variedade de circunstâncias, e proibidora de qualquer iniciativa pessoal. Essa confusão fez desaparecer progressivamente a prudência, fazendo com que ela fosse substituída por uma espécie de passividade inerte e resignada que se transforma em completa temeridade tão logo se verifique ser possível transgredir impunemente a regra arbitrária. A lei foi substituída por um conjunto de normas particulares que não justificam qualquer princípio, e das quais cada uma será aplicada uniformemente, para fazer frente a todos os casos concretos absolutamente idênticos; esses casos concretos, já regulados pela via legislativa, serão cedo ou tarde fonte de litígios que provocarão novas intervenções legislativas destinadas a regular esses novos litígios. O legislador se vê então arrastado para um verdadeiro caminho sem volta e permanece impotente para retomar uma realidade que lhe escapa indefinidamente. Chega-se assim à situação contraditória de uma lei cada vez mais invasiva e cada vez mais impotente. Se muitos veem a saúde e a segurança somente pela intervenção crescente do legislador, o prestígio da lei corre também o risco de ao mesmo tempo dissipar-se na incoerência arbitrária, na imoralidade e finamente na revolta. A menos que voltemos à constatação de La Bruyère: o tolo é um autômato.
  25. «A civilização não é mais então concebida como a realização das virtualidades contidas na natureza humana, mas como a exploração metódica e padronizada do universo de acordo com um plano rigoroso. A atividade moral não é mais dirigida pelo amor dos bens que aperfeiçoam a natureza do homem, mas por um código universal e por um regulamento canônico de conduta. A ética fundada sobre a tradição e a continuidade da moral é substituída por uma nova moral estabelecida sobre a lei e que, pouco a pouco, é esvaziada do seu caráter costumeiro para ser somente um sistema abstrato promulgado pelo legislador. Essa desaparição do sentido da tradição traz a imensa consequência de identificar as regras que regem a conduta humana com o sistema jurídico-político da cidade que, ele também, seguindo a mesma vertente, substituiu o costume. Os Capetianos não legislavam: eles promulgavam ordenamentos que entravam ou não nos costumes. O costume era seu juiz. […] Assim, a Revolução substitui o regime patronal e tradicionalista por um sistema legislativo absoluto que, na medida em que ele ignora os obstáculos postos pela tradição, não impõe qualquer limite ao seu império. Desaparecidas as tradições morais e religiosas, tudo que resta como alicerce da atividade prática é o respeito à lei escrita da Cidade, imposta pela força. A conduta humana é boa se ela segue o caminho indicado pelo legislador que, príncipe, delegado do povo ou tirano, tem sua concepção de homem que ele transforma em lei e que a impõe dogmaticamente a todos os seus súditos» (Marcel de Corte, Incarnation de l’homme, Librairie de Médicis, 1942, p. 70-72).
  26. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIa, q. 91, a. 1.
  27. Louis Billot, S.J., De l’Église du Christ, Roma, 4ª edition de 1921, questão 11, tese 22, p. 461.
  28. Em De vitiis et peccatis, T. I, n° 399, p. 319, o Padre Ramirez distingue uma dupla regra de moralidade. Há uma regra não viva, que é a lei, e há a regra viva, que é a razão prática daquele que age. É aquele que age que aplica a lei, realizando assim a obra da prudência pessoal. E em La Prudence, Iris, 2006, n° 45, p. 55, ele observa que a prudência «não é um regulamento vindo do exterior a maneira de uma causa exemplar, mas do interior». Negar a existência de uma regra próxima e subjetiva de moralidade equivaleria de alguma maneira à teoria averroísta do intelecto separado, onde a causalidade divina transcendente é considerada incompatível com a causalidade humana imanente.
  29. O uso desse significado de ordem retórica é um simples fato. Pode-se constatá-lo. Mas em constatando-o, não se pode deixar de pensar também que a pregação que recorre a esse gênero de expressões exerce uma retórica muito má e acaba por semeando nos espíritos ideias falsas e nefastas. Os males dos quais sofremos hoje são em grande parte consequência disso.
  30. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa-IIa, q. 47, a. 12. «Ora, é manifesto que aos súditos, como tais e, como tais, aos escravos, não compete reger e governar, mas antes, serem regidos e governados. Portanto, a prudência não é virtude de escravos, enquanto tais, nem de súditos, enquanto tais. Mas, todo homem, enquanto racional, participando, de certo modo, do governo, pelo arbítrio da sua razão, nessa mesma medida lhe convém a prudência. Por onde é claro, que a prudência existe no príncipe, a modo de arte arquitetônica, como diz Aristóteles; nos súditos, porém, a modo de arte do operário manual».
  31. É a censura que se exprime sob a pluma do atual diretor da Revie thomiste, o Padre Serge Bonino, O.P., na recensão da biografia de Mons. Lefebvre: a posição da Fraternidade São Pio X é considerada «insustentável». Cf. Serge Bonino, «Recension», em Revue thomiste, T. 102 (2002), p. 692.
  32. Jérôme Carcopino, Sylla ou la monarchie manquée, L’Artisan du livre, 1931, p. 131.
  33. Bento XIV, De servorum Dei beatificatione et de beatorum canonisatione, Livro I, capítulo 39.
  34. Padre Patrick de La Rocque, «Em breve bem-aventurado? Dossiê sobre os projetos de beatificação de Pio XII e João Paulo II», publicado no site oficial do Distrito da França da Fraternidade São Pio X, La Porte Latine, sábado, 6 de março de 2020.
  35. João Paulo II, «Discurso de 9 de janeiro de 1993, durante o encontro inter-religioso pela paz na Europa» em DC n.º 2066, p. 166-167.
  36. João Paulo II, «Discurso de 12 de dezembro de 1996 ao novo embaixador da República de Fiji» em L’Osservatore romano, edição em língua francesa de 14 de janeiro de 1997, p. 7. Ver também João Paulo II, «Carta ao cardeal Etchegaray de 28 de agosto de 2001, na ocasião do 15º encontro de Homens e religiões» em DC nº 2255, p. 818: «Os homens e as mulheres do mundo veem como aprendestes a estar juntos e a rezar de acordo com a própria tradição religiosa, sem confusão e no respeito recíproco, mantendo cada qual íntegras e sólidas as próprias crenças. Numa sociedade na qual convivem pessoas de religião diversa, este encontro representa um sinal de paz. Todos podem verificar como, neste espírito, a paz entre os povos já não é uma utopia distante».
  37. Bento XIV, De servorum Dei beatificatione et de beatorum canonisatione, Livro III, capítulo 23, nº 34.
  38. São Pio X, carta Notre charge apostolique sobre o Sillon, em La Paix intérieure des nations, coll. Les Enseignements pontificaux, Solesmes, n.° 462, p. 272.
  39. Por exemplo, João Paulo II jamais chamou os judeus à conversão a Cristo. Ele inclusive baniu tal intenção em seus procedimentos, conforme testemunham essas instruções dirigidas ao episcopado, em vista do diálogo judaico-cristão: «Será necessário precisar, sobretudo para aqueles que se mantêm cépticos, e até mesmo hostis, que esta aproximação não há-de confundir-se com certo relativismo religioso e menos ainda com uma perda da identidade? […] Deus conceda aos cristãos e aos judeus encontrarem-se mais, realizarem trocas em profundidade e a partir da identidade duns e doutros, sem nunca a obscurecerem de nenhum lado, mas procurando verdadeiramente a vontade de Deus que se revelou!» (João Paulo II, «Discurso de 6 de março de 1982 aos delegados das conferências episcopais sobre as relações com o judaísmo» em DC n.º 1827, p. 340). Por conseguinte, João Paulo II recusa todo discurso que tenda a afirmar objetivamente que Cristo é o cumprimento das Escrituras, e apresentava sistematicamente a referência a Nosso Senhor como sujeito de um ponto de vista relativo e subjetivo: «A palavra de Deus é uma lâmpada e uma luz para o nosso caminho […] Esta palavra é transmitida aos nossos irmãos e irmãs judeus, de maneira especial na Torá. Para os cristãos, esta palavra encontra o seu cumprimento em Jesus Cristo. Embora conservemos e interpretemos esta herança de modos diferentes, ambos sentimos o dever de dar testemunho comum da paternidade de Deus e do seu amor pelas suas criaturas.» (João Paulo II, «Discurso de 22 de maio de 2003 aos representantes do Congresso Judaico Mundial e da Comissão Judaica Internacional para as consultas inter-religiosas» em DC n.º 2297, p. 733).
  40. Por exemplo, para poder fazer do judaísmo atual um princípio de bênção para o mundo, e apoiar assim o postulado do diálogo inter-religioso, João Paulo II não hesitou em subverter o próprio texto das Sagradas Escrituras. Dirigindo-se à comunidade judaica dos Estados Unidos, ele teve realmente que deformar Gênesis 22, 18 para aplicar ao judaísmo: «É conveniente lembrar a promessa de Deus a Abraão e à fraternidade espiritual que ela estabeleceu: “Em teus descendentes serão benditas toldas as nações da terra, porque obedeceste à minha voz” (Gn 22, 18). Essa fraternidade espiritual, ligada a Deus por obediência, requer um grande respeito mútuo […] Ao mesmo tempo, nós reconhecemos e apreciamos os tesouros espirituais do povo judeu e o testemunho religioso que ele presta a Deus.» (João Paulo II, «Discurso de 11 de setembro de 1987 à comunidade judaica dos Estados Unidos» em DC n.º 1948, p. 937). Enquanto o texto bíblico está no singular (Gn 22, 18: «E na tua descendência serão benditas toldas as nações da terra»), singular precisamente sublinhado por São Paulo para indicar a dimensão exclusivamente crística dessa promessa (Gal 3, 16: «Ora as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. [A Escritura] não diz: Aos seus descendentes – como [se se tratasse] de muitos – mas [diz] como de um só: “A tua descendência”, a qual é Cristo»), João Paulo II coloca-o no plural («em teus descendentes»), pois é o único meio de atribuir ao judaísmo o que pertence apenas a Cristo: ser um princípio de bênção.
  41. Cf. Caetano, citado par Charles Journet, L’Église du Verbe Incarné. Tome I: «La Hiérarchie apostolique », Desclée de Brouwer, 1955, p. 546 : «Todo poder é dado ao papa apenas para servir à Igreja. Ela é maior que ele, não por autoridade, mas pela bondade e nobreza. É o papado que está para a Igreja e não o contrário: o que tem razão de fim é sempre melhor que o meio. Também ao papa se autodenomina servo dos servos de Deus, e assim permanece na verdade».
  42. Comentário sobre o livro das Sentenças de Pedro Lombardo, Livro IV, dist 17, q. 3, art. 1, qc. 5 corpus, citado por Juan de Torquemada, Summa de Ecclesia, Livro II, cap. 52 (sobre a plenitude de poder que é atribuída por direito divino ao Soberano Pontífice).
  43. 2Tim 4, 2.