A IDÉIA PATRÍSTICA DE ANTICRISTO

Fim_dos_TemposFonte: Discussions and Arguments”, The Patristical Idea of Antichrist, part I – Cardeal John Henry Newman – Tradução: Dominus Est

Sermão 1. O tempo do Anticristo

Os cristãos tessalonicenses achavam que a vinda de Cristo estava próxima. São Paulo então os avisou por escrito para não alimentarem esse tipo de expectativa. Não que o Apóstolo desaprovasse o anseio deles pela vinda do Senhor, ao contrário; mas ele avisa que um determinado evento deverá ocorrer antes dessa vinda, e que enquanto não houver esse evento não haverá a vinda. “Ninguém de modo algum vos engane”, diz o Apóstolo, “porque isto não se dará sem que antes venha a apostasia (quase geral dos fiéis), e sem que tenha aparecido o homem do pecado, o filho da perdição” [2Ts 2:4].

Enquanto durar o mundo, essa passagem estará repleta de reverente interesse dos cristãos. É dever de todo cristão estar sempre atento para a vinda do Senhor; de buscar os sinais da vinda em tudo que acontece em sua volta; e, acima de tudo, ter em mente esse terrível sinal ao qual fala São Paulo aos tessalonicenses. Assim como a primeira vinda do Senhor teve seu predecessor, a segunda também terá o seu. O primeiro foi aquele que é “ainda mais do que profeta” [Mt 11:9], João Batista, enquanto que o segundo será mais que um inimigo de Cristo: será a própria imagem de Satanás, isto é, o assustador e odiável Anticristo. É dele, conforme nos é apresentado na profecia, que me proponho a falar. Ao fazer isso seguirei exclusivamente a orientação dos antigos Padres da Igreja.

Sigo os Padres da Igreja, mas não por pensar que em tal assunto eles possuem o valor que possuem nos campos das doutrinas e dos ritos. Quando eles falam de doutrinas, eles falam delas como algo que é universalmente mantido. Eles são testemunhas do fato de que receberam essas doutrinas não de um lugar ou de outro, mas de todos. Recebemos então essas doutrinas que eles nos ensinam, mas não apenas porque eles nos ensinaram, e sim porque os cristãos de todos os lugares a mantiveram dessa maneira. Tomamos os Padres da Igreja pela honestidade dos seus testemunhos, e não por suas autoridades, embora eles também sejam autoridades. Se eles afirmassem essa mesma doutrina, mas dissessem: “Essas são as nossas opiniões: nós a deduzimos da Sagrada Escritura, e elas são verdadeiras”, poderíamos então duvidar delas assim que a recebêssemos. Com justiça poderíamos dizer que temos tanto direito quanto eles de deduzir algo da Sagrada Escritura, pois essas deduções seriam meras opiniões, e que se nossas deduções coincidissem com as deles, essa seria uma feliz coincidência, e que se não coincidissem, paciência, pois cada um deveria seguir a própria luz. Não há dúvidas que homem nenhum jamais deve impor suas próprias deduções ao outro no que diz respeito à fé. Há, entretanto, uma óbvia obrigação do ignorante de se submeter àquele que é mais bem informado; também é conveniente que os jovens implicitamente submetam-se por um tempo aos ensinamentos dos mais velhos; mas, além disso, a opinião de um homem não é melhor do que a do outro. Todavia, esse não é o caso quando estamos falando dos primeiros Padres da Igreja. Eles não estão dando suas opiniões privadas; eles não dizem “Isso é verdade, porque vemos dessa forma na Sagrada Escritura” (e aí pode haver diferença entre os juízos), mas sim “Isso é verdade pois, com efeito, é algo que sempre foi mantido por todas as Igrejas até os nossos dias, sem interrupção, desde a época dos Apóstolos”, de modo que a coisa é apenas uma questão de testemunho, ou seja, se eles tinham os meios de saber como aquilo continuava a ser mantido — e ainda continuava sendo. Porquanto, essa era a crença mantida por igrejas que ao mesmo tempo estavam distantes e independentes uma das outras, mas que por terem sido todas elas fundadas pelos Apóstolos, não havia dúvida que esses testemunhos são verdadeiros e apostólicos.

Essa, portanto, é a maneira pela qual os Padres da Igreja falam a respeito da doutrina. Por outro lado, a situação torna-se diferente quando eles interpretam uma profecia. Nessa área não parece haver qualquer tradição formal e distinta, tampouco qualquer tradição digna de crédito; portanto, quando eles interpretam a Escritura, eles estão admitidamente na maior parte do tempo dando suas opiniões privadas ou provendo vaticínios incertos, vagos e meramente genéricos. Isso é o que podia se esperar, pois não faz parte da conduta da Divina Providência interpretar profecias antes do evento. O que os Apóstolos expuseram a respeito do futuro foi em maior parte transmitido privadamente a indivíduos — e a respeito do conteúdo dessas exposições não havia a intenção de registrá-lo por escrito ou usá-lo para edificar o corpo de Cristo — e logo acabou se perdendo. Assim, alguns versículos após a passagem que citei, São Paulo diz: “Não vos lembrais que eu vos dizia estas coisas, quando ainda estava convosco?” [2Ts 2:5] e ele usa alusões para se referir ao que foi dito apenas oralmente. Isso mostra que havia pouco cuidado na discriminação e autenticação das citações proféticas, de modo que os tessalonicenses chegaram a adotar uma opinião sobre o Apóstolo ter dito — na verdade ele não disse — que o Dia da vinda de Cristo estava próximo.

Embora os Padres não nos tenham trazido as interpretações das profecias com a mesma certeza que trouxeram a doutrina, elas devem ser lidas com a deferência proporcional à concordância, ao valor, à prevalência e — novamente — ao caráter fidedigno das opiniões emitidas por eles. Para dizer o mínimo, é provável que eles estejam tão certos quanto os comentadores da atualidade; em alguns aspectos é possível que eles estejam até mais certos, dado que interpretação de profecia tornou-se atualmente questão de controvérsia e partidarismo. Além disso, a paixão e o preconceito interferem na solidez do juízo de tal forma, que hoje está difícil dizer se o intérprete é confiável ou se um cristão leigo qualquer não é tão bom expositor quanto aquele intérprete que presumidamente exerce a função.

1 – Agora tratando da passagem em questão, a qual examinarei com argumentos extraídos da Escritura, sem poupar esforços para concordar, ou dizer porquê discuto com os comentadores modernos: “isto não se dará sem que antes venha a apostasia”. Diz-se nessa passagem que o sinal do segundo Advento é uma tremenda apostasia e a manifestação do homem do pecado, o filho da perdição — ou, como comumente o chamamos, o Anticristo. Nosso Salvador parece acrescentar que esse sinal O precederá imediatamente, ou que a Sua vinda virá num tempo bem próximo após esse acontecimento, pois após falar de “falsos profetas” [Mt 24:11], “falsos cristos” [Mt 24:24], “sinais e prodígios mentirosos” [2Ts 2:9] e que “Multiplicando-se a iniquidade, se resfriará a caridade de muitos” [Mt 24:12] (entre outros), Ele acrescenta que “assim também quando virdes tudo isto, sabei que (o Filho do homem) está perto, está às portas”. Novamente Ele diz: “Quando, pois, virdes a abominação da desolação (…) posta no lugar santo (…) então os habitantes da Judeia, fujam para os montes” [Mt 24:16,33]. Com efeito, São Paulo também deixa isso implícito quando diz que o Anticristo será destruído pelo esplendor da vinda de Cristo.

Primeiramente então digo que, se o Anticristo vir imediatamente antes de Cristo, e que ele servirá de sinal da vinda, está manifesto que o Anticristo ainda não veio, mas ainda está por vir, dado que Cristo já teria vindo se fosse o caso.

Ademais, parece que a duração da tirania do Anticristo será de três anos e meio ou, como diz na Escritura, “um tempo, dois tempos e metade dum tempo” ou “quarenta e dois meses” — outra razão que nos faz crer que ele ainda não apareceu; caso contrário, se ele já apareceu na nossa época, foi uma aparição bem recente, já que seu tempo é tão curto; portanto não podemos dizer que ele não apareceu nos últimos três anos.

Há também outras duas condições para a aparição do Anticristo que ainda não foram cumpridas. Primeiro a era de aflição sem igual, “porque então será grande a tribulação, como nunca foi, desde o princípio do mundo até agora, nem jamais será. E, se não se abreviassem aqueles dias, não se salvaria pessoa alguma;” [Mt 24:21,22]. Isso ainda não se deu. A outra condição é a pregação do Evangelho por todo o mundo: “Será pregado este Evangelho do reino por todo o mundo, em testemunho a todas as gentes. Então chegará o fim.” [Mt 24:14]

2 – Pode-se contestar essa conclusão com a passagem de Paulo que vem logo antes de uma já citada: “o mistério da iniquidade já se opera” [2Ts 2:7], ou seja, mesmo nos dias do próprio apóstolo parecia que o Anticristo já havia vindo. Todavia, o apóstolo parecia querer dizer apenas que na sua época havia alusões obscuras, maus agouros, presságios e elementos em ação que, um dia, chegarão à sua plenitude. Assim como aspirantes a Cristo vieram antes de Cristo, também o Anticristo é precedido por semelhantes que aludem obscuramente a ele. Com efeito, todos os eventos deste mundo se dão na história como um tipo de círculo que cresce cada vez mais. A época dos apóstolos tipificou os últimos dias: haviam falsos cristos, insurreições, sofrimentos, perseguições e a destruição jurídica da igreja judaica. Da mesma maneira, toda era apresenta a seu modo prefigurações de eventos futuros. Quando realmente acontecerem esses eventos, dar-se-á então o cumprimento da profecia a qual todos os anteriores se baseavam. Assim, São João diz: “Filhinhos, é a última hora. Como ouvistes dizer, o Anticristo está para vir, mas digo-vos que já há muitos Anticristos, donde conhecemos que é a última hora.” [1Jo 2:18]. O Anticristo aproximou-se, mas ainda não veio; viu-se ele, mas não se viu pela última vez. O que os Apóstolos chamavam de “a última hora” — o fim do mundo — é também o tempo do Anticristo.

A segunda contestação que pode ser feita é a seguinte: São Paulo diz “E vós agora sabeis o que é que o retém [o Anticristo], até que chegue o tempo de se manifestar” — É dito que algo retém a manifestação do inimigo da verdade. Prossegue o Apóstolo: “somente falta que aquele, que agora o retém, desapareça” [2Ts 2:6-7]. Considerava-se em épocas passadas que o Império Romano era o poder que retinha [o Anticristo], mas o Império Romano desapareceu há muito (é o que dizem); segue-se então que o Anticristo já veio há muito tempo. Em resposta a essa objeção eu digo que reconheço como “aquele que retém” o ‘poder de Roma’, pois todos os escritores antigos falaram disso. E reconheço Roma, de acordo com a visão de Daniel, como a sucessora da Grécia; portanto o Anticristo sucede Roma e a Segunda Vinda sucede o Anticristo. Entretanto, daí não se conclui que o Anticristo já veio, pois não está claro se o Império Romano acabou. Longe disso, o Império Romano, segundo a profecia, permanece até hoje. Roma tem um destino bem diferente dos outros três monstros mencionados pelo profeta, conforme podemos ver na descrição: “Depois disto, continuando a contemplar esta visão nocturna, vi um quarto animal, terrível, espantoso e extraordinariamente forte, com uns grandes dentes de ferro; devorava e despedaçava, e calcava aos pés o que sobejava; era diferente dos outros animais que eu tinha visto antes dele, e tinha dez hastes.” [Dan. 7:7] Essas dez hastes [ou chifres] são, de acordo com o anjo, “dez reis que se levantarão neste reino” [Dan. 7:24]. Assim como os dez chifres pertencem inseparavelmente ao quarto animal, assim também são os reinos que derivam da divisão do Império Romano, dado que não são mais que a continuação e a consumação do próprio Império (império esse que ainda sobrevive de acordo com a profecia, independente de como interpretamos essa questão histórica). Consequentemente, ainda não vimos o fim do Império Romano. “Aquele que retém” ainda existe pela própria manifestação dos seus dez chifres, e enquanto ele não for removido o Anticristo não virá. E é entre esses dez chifres que ele surgirá, como nos diz o Profeta: “Estava eu contemplando as hastes quando vi uma outra haste pequena, que nascia do meio delas; … nesta haste havia uns olhos como olhos de homem, e uma boca que falava com insolência” [Dan. 7:8].

Enquanto o Anticristo não aparece de fato, sempre haverá um esforço contínuo das forças do mal para manifestá-lo ao mundo. A história da Igreja é a história desse longo nascimento. “O mistério da iniquidade já se opera”, disse São Paulo. “Digo-vos que já há muitos Anticristos”, disse São João — “todo o espírito que não confessa Jesus, não é de Deus, mas é um Anticristo, do qual vós ouvistes que vem, e agora está já no mundo.” [1Jo 4:3]. O Anticristo já “operava” desde a época dos apóstolos, embora ele esteja sob “retenção”. Exatamente neste momento há uma feroz luta: é o Anticristo tentando surgir para o mundo, e os poderes políticos dos países que profeticamente são Roma estão reprimindo-o. Com efeito, temos diante de nós, assim como nossos antepassados tiveram diante de si, um princípio transgressor [ἄνομος] que está por toda parte — um espírito de rebelião contra Deus e o homem, o qual os poderes governamentais de cada país mal conseguem conter, a despeito de grandes esforços. Se essa força bárbara que testemunhamos é o espírito do Anticristo — aquele que um dia será solto, aquele espírito pai de toda heresia, cisma, sedição, revolução e guerra — ou se não é, não sabemos; sabe-se apenas que o atual sistema social e governamental, enquanto representante das forças romanas, é aquele que retém o Anticristo, e o Anticristo surgirá quando esse sistema não mais conseguir retê-lo.

3 – Tem ficado mais ou menos implícito nas afirmações acima que o Anticristo é um homem — um indivíduo — e não um poder ou um reino. Após considerar plenamente o caráter simbólico da linguagem profética, essa certamente é a impressão que as Escrituras deixam em nós a respeito do Anticristo. Considere conjuntamente as passagens a seguir que o descrevem e veja se não é essa conclusão que devemos chegar. Primeiro a passagem na epístola paulina: “Ninguém de modo algum voe engane, porque isto não se dará sem que antes venha a apostasia (quase geral dos fiéis), e sem que tenha aparecido o homem do pecado, o filho da perdição, 4 o qual se oporá (a Deus) e se elevará sobre tudo o que se chama Deus ou que é adorado, de sorte que se sentará no templo de Deus, apresentando-se como se fosse Deus. […] E então se manifestará esse iníquo (a quem o Senhor Jesus destruirá com o sopro da sua boca e aniquilará com o resplendor da sua vinda). A vinda deste iníquo será acompanhada, por obra de Satanás, de toda a espécie de milagres, sinais e prodígios mentirosos.” [2TS 2:3,4,8,9]

E o profeta Daniel: “Falará insolentemente contra o Altíssimo, atropelará os santos do Altíssimo e imaginará que pode mudar os tempos e a lei; os santos serão entregues nas suas mãos até um (ano ou) tempo, dois (anos ou) tempos e metade dum (ano ou) tempo. (Depois) se realizará o juízo, e ser-lhe-á tirado o poder para o destruir e aniquilar para sempre.” [Dan. 7:25-26]. E de novo: “O rei fará o que quiser, elevar-se-á e engrandecer-se-á contra todo o deus; até falará insolentemente contra o Deus dos deuses, e sair-lhe-ão bem as coisas até que a ira chegue ao cúmulo, porque o que foi decretado, cumprir-se-á. Não terá respeito algum aos deuses de seus pais, nem à divindade querida das mulheres; nenhum caso fará dos deuses, pois se julgará superior a tudo. Mas venerará o deus das fortalezas no seu lugar, enfeitará com ouro, prata, pedras preciosas e coisas de grande valor, a este deus, que seus pais desconheceram.” [Dan. 11:36-38] Observemos que em outra ocasião Daniel descreve outros reis e que os fatos mostraram que certamente ele estava falando de indivíduos, como por exemplo Xerxes, Dário e Alexandre.

São João, da mesma maneira: “E foi-lhe dada uma boca que proferia coisas arrogantes e blasfêmias, e foi-lhe dado poder de agir durante quarenta e dois meses. Abriu a sua boca em blasfêmias contra Deus, para blasfemar o seu nome, o seu tabernáculo e os que habitam no céu. Foi-lhe permitido fazer guerra aos santos e vencê-los. E foi-lhe dado poder sobre toda a tribo, povo, língua e nação. Adoraram-na todos os habitantes da terra, cujos nomes não estão escritos, desde a fundação do mundo, no livro da vida do Cordeiro, que foi imolado.” [Apoc. 13:5-8]

Ademais, que por Anticristo quer-se referir a um indivíduo, fica verossímil pelas antecipações que, como eu disse a respeito do cumprimento da profecia, já ocorreram na história. Indivíduos surgiram e corresponderam em grande parte às descrições acima; e essa circunstância oferece a probabilidade de que o cumprimento absoluto da profecia também se dará por meio de um indivíduo. O mais notável prenúncio desse flagelo ao qual estamos destinados apareceu após Daniel e antes dos Apóstolos: é o rei pagão Antíoco, aquele referido no livro dos Macabeus. Esse exemplo serve ao nosso propósito, pois ele é certamente descrito (assim julgamos) por Daniel em outra parte de sua profecia em termos que deixam a entender que Antíoco pertence ao Anticristo — e por ‘pertencer’ queremos dizer que Antíoco foi efetivamente o que parecia ser: um protótipo daquele que será o mais terrível inimigo da Igreja. Antíoco foi um selvagem perseguidor dos judeus em seus últimos dias assim como o Anticristo será o perseguidor dos cristãos. Algumas passagens de Macabeus mostrarão quem foi ele. Nas Escrituras São Paulo fala de uma apostasia que é seguida pelo Anticristo; e assim a futura Igreja foi tipificada no passado judeu. “Naqueles dias saíram de Israel uns filhos iníquos, que seduziram muitos, dizendo: Vamos e façamos aliança com as nações circunvizinhas, porque, desde que nos separamos delas, vieram sobre nós muitos males. E pareceu bem este conselho a seu olhos. Alguns do povo resolveram-se e foram ter com o rei, o qual lhes deu poder de viver segundo os costumes dos gentios. Em seguida edificaram em Jerusalém um ginásio conforme o uso das nações. Dissimularam os sinais da circuncisão, separaram-se da santa aliança, juntaram-se com as nações e venderam-se para fazerem o mal” [1Mac 1:12-16]. Eis a apostasia. “Após essa introdução o Inimigo da verdade aparece. Depois de ter vencido o Egipto, […] Antíoco voltou e marchou contra Israel. Chegado a Jerusalém com um formidável exército, entrou cheio de soberba no santuário e tomou o altar de ouro, o candeeiro dos lumes com todos os seus utensílios, a mesa da proposição, as bacias, os copos, os grais de ouro, o véu, as coroas, e arrancou todo o ornamento de ouro que cobria o templo. Tomou a prata e o ouro, os vasos preciosos e os tesouros escondidos que encontrou. Tendo saqueado tudo, foi-se para o seu país, depois de haver feito grande matança de homens e proferido palavras insolentes” [1Mac 1:21-25]. Após isso ele colocou fogo em Jerusalém: “Tomou os despojos da cidade, pôs-lhes fogo e destruiu as suas casas e os muros que a cercavam. […]Seguidamente fortificaram a cidade de Davide com um grande e sólido muro [e …] Guarneceram-na com uma raça de pecado, com homens perversos, e aí se fortificaram” [1Mac 1:33, 35, 36]. E depois “Então o rei  Antíoco decretou a todo o seu reino que todos os povos não fossem mais que um, que qual abandonasse a sua lei particular. Todas as nações se conformaram com esta ordem do rei Antíoco; muitos de Israel submeteram-se a este culto, sacrificaram aos ídolos e violaram o sábado” [1Mac 1:43-45]. Após isso ele impôs essas impiedades sobre o povo escolhido. Seriam mortos todos aqueles que não “profanassem os sábados e as solenidades. Mandou (além disto) que se profanassem os lugares santos e o santo povo de Israel. Ordenou que se erigissem altares e templos, que se levantassem ídolos, que se oferecessem em sacrifício suínos (e outros) animais imundos, que deixassem os seus filhos por circuncidar” [1Mac 1:48-51]. Após um tempo ele construiu um ídolo, ou nas palavras da história: “edificaram a abominação da desolação sobre o altar de Deus; por toda a parte se edificaram altares (aos ídolos), em todas as cidades de Judá, ao redor. […]Rasgavam e queimavam todos os livros da lei de Deus, que podiam encontrar” [1Mac 1:57, 59]. E também: “Entretanto muitos do povo de Israel resolveram não comer nada impuro e preferiram morrer a manchar-se com alimentos (impuros). […] Caiu sobre Israel uma grande cólera” [1Mac 1:65, 67]. Aqui apresentamos algumas das características peculiares do Anticristo, embora ele próprio as apresentará de maneira muito mais intensa que Antíoco.

A história do imperador apóstata Juliano, que viveu no século IV d.C., nos fornece outra estimativa do vindouro Anticristo e um motivo adicional para pensar que o Anticristo será uma pessoa, não um reino, poder ou similar.

E também há o falso profeta Maomé, que propagou sua impostura cerca de 600 anos depois de Cristo.

Enfim, que o Anticristo será um indivíduo e não um poder — ou um mero espírito ético, ou um sistema político ou uma dinastia ou uma sucessão de governantes — já está dado universalmente na tradição da Igreja primitiva. “Devemos dizer”, escreve São Jerônimo sobre Daniel, “que nos foi trazido pelos escritores eclesiásticos que, no fim do mundo, quando o Império Romano estiver para ser destruído, haverá dez reis que dividirão o território romano entre eles, e que um décimo primeiro surgirá; um rei menor que dominará três desses reis e que, por conseguinte, receberá a submissão dos outros sete. Foi dito que ‘o chifre tem olhos, como os olhos de um homem’, para presumirmos, como outros já o fizeram, que ele seja um espírito mau (ou um demônio) e seja também um homem, cujo corpo servirá de morada para Satanás. E ‘uma boca que proferia coisas arrogantes e blasfêmias’, pois ele é o homem do pecado, filho da perdição, de modo que ele se atreverá a sentar ‘no templo de Deus, apresentando-se como se fosse Deus’. ‘A besta foi morta e sua carcaça sumiu’: dado que o Anticristo blasfema desde o Império Romano unido, todos os reinos desse império serão abolidos e não haverá mais reino terrestre, mas uma sociedade de santos e a vinda triunfante do Filho de Deus”. E diz Teodoreto de Cirro: “Após ter falado de Antíoco IV Epifânio, o profeta passa da figura ao antítipo, pois o antítipo de Antíoco é o Anticristo, e a figura do Anticristo é Antíoco. Assim como Antíoco forçou os judeus a agir impiamente, também irá o homem do pecado, o filho da perdição, tomar todas as medidas possíveis para seduzir os piedosos, seja por falsos milagres, seja pela força ou seja pela perseguição. Conforme diz o Senhor, “porque então será grande a tribulação, como nunca foi, desde o princípio do mundo até agora, nem jamais será.”

O que eu disse sobre este assunto pode ser resumido da seguinte forma: que a vinda de Cristo será imediatamente precedida de uma eclosão terrível e sem precedentes de males — que São Paulo chamou de Apostasia — acompanhada do aparecimento de um terrível ‘Homem do Pecado’ e ‘Filho da Perdição’, o principal e singular inimigo de Cristo, ou seja, o Anticristo; que isso se dará quando as revoluções prevalecerem e o atual estado de coisas da sociedade for destroçado; e que, neste momento [1872], o espírito ao qual ele personificará e representará ainda se mantém restringido pelas “autoridades superiores”; mas tão logo essas autoridades forem dissolvidas ele surgirá do seio delas e as unirá novamente à sua perversa maneira, sob seu jugo, excluindo a Igreja.

4 – Seria inconveniente dizer mais que isso neste momento. Entretanto, insistirei numa circunstância particular contida no anúncio de São Paulo ao qual já comentei em parte.

Diz-se que haverá uma “apostasia e o homem do pecado aparecerá”. Em outras palavras, o Homem do Pecado nasce da apostasia, ou pelo menos ele chega ao poder através dela, ou é precedido por ela, ou sequer ele existiria se não fosse por ela. Assim diz o texto inspirado. Agora observe o quão notavelmente os caminhos da Providência, conforme vimos na história, levam em consideração essa previsão.

Primeiro, no caso de Antíoco, temos uma consideração que veio antes dos eventos profetizados. Os israelitas, ou pelo menos grande parte deles, deixaram de lado sua religião sagrada e então foi permitido que o inimigo aparecesse.

Em seguida temos o imperador apóstata Juliano, que tentou com sua astúcia arruinar a Igreja e introduzir de volta o paganismo: nota-se também no caso dele houve o precedente, aliás, a sua própria existência foi cultivada pela heresia; aquela que foi a primeira grande heresia a perturbar a paz e a pureza da Igreja. Cerca de quarenta anos antes de ele tornar-se imperador, havia surgido a pestilenta heresia ariana que negava que Jesus é Deus. Essa heresia disseminou sua vileza entre os regentes da Igreja como um câncer; e com a traição de alguns e erros de outros, ela chegou a dominar toda a cristandade. Os poucos fiéis e santos, testemunhos da Verdade, exclamaram com espanto e terror a era da apostasia, e que o Anticristo estava por vir. Eles chamaram essa heresia de “precursora do Anticristo”. E, com efeito, o presságio veio. Juliano foi educado no seio do arianismo pelos mais proeminentes arianos. Seu tutor foi aquele Eusébio cujo nome seus partidários receberam o nome; e no devido tempo Juliano apostatou e virou pagão, tornando-se assim um odiento perseguidor da Igreja, embora ele tenha sido alijado antes de reinar pelo mesmo tempo que reinará o verdadeiro Anticristo.

Em outro caso surgiu outra heresia: suas consequências são mais duradouras e se alastraram muito mais; ela teve um caráter duplo; eu diria que ela tem duas cabeças: o nestorianismo e o euticianismo. Aparentemente opostas entre si, elas tiveram um fim em comum: ambas negaram de uma forma ou outra a verdade da encarnação graciosa de Cristo e trataram de destruir a fé de maneira até mais insidiosa que a heresia de Ário. Ela se espalhou pelo Oriente Médio e Egito e corrompeu e envenenou aquelas igrejas que outrora foram as mais antigas fortalezas da verdade revelada. Dessa heresia — ou por meio dela — surgiu o impostor Maomé, que criou sua própria crença. Eis outro caso de um presságio do Anticristo.

Esses exemplos nos dão um alerta: — O inimigo de Cristo e da Igreja surgirá de um determinado afastamento [apostasia da religião] de Deus? E não há razões para temermos que essa apostasia está sendo gradualmente preparada, compilada e precipitada hoje mesmo? Porquanto, não há agora [1872] um especial esforço feito ao redor do mundo — isto é, aqui e ali, mais ou menos à vista e mais ou menos discreto, neste ou naquele lugar, mas mais visível ou formidável nos locais mais civilizados e poderosos — para se tirar a Religião do meio público? Não há uma crescente tomada de posição dizendo que uma nação não tem nada a ver com a Religião e que a Religião é apenas uma questão de consciência individual? (Isso é o mesmo que dizer que devemos deixar a Verdade se esvair da Terra sem tentar dar a ela uma continuidade para as gerações futuras.) Não há um movimento vigoroso e unido em todos os países que visa alijar a Igreja de Cristo do seu poder e lugar? Não há um intenso e contínuo esforço para dar um fim na necessidade da Religião nos negócios públicos? Por exemplo: a tentativa de dar fim aos juramentos, com a desculpa de que eles são muito sagrados para a vida comum, em vez de se procurar fazer com que eles sejam feitos de maneira mais reverente e adequada. Não há uma tentativa de se educar sem a Religião? — Em outras palavras, colocando todas as demais religiões juntas e dizer que todas têm o mesmo princípio. Não há também uma tentativa de aplicar a temperança e as virtudes que vêm da verdadeira religião, mas sem falar da própria Religião, usando como meio sociedades que são constituídas de valores meramente utilitários? Não há uma tentativa de fazer a conveniência, e não a verdade, o fim e a medida do Estado e dos decretos legais? Não há uma tentativa de fazer os números, e não a Verdade, a base da conservação ou não conservação deste ou daquele credo, como se tivéssemos alguma razão nas Escrituras para acreditarmos que muitos significa o certo e poucos significa o erro? Não há uma tentativa de privar a Bíblia do seu exclusivo significado e fazer as pessoas pensarem que ela tem centenas de significados e que todos eles são igualmente bons ou, em outras palavras, que ela não tem significado algum, uma letra morta que pode ser deixada de lado? Não há uma tentativa de suplantar completamente a Religião enquanto existente objetivamente e externamente, e de suplantá-la enquanto Tradição e Escritura? De confiná-la aos sentimentos individuais e, assim, dizer o quão mutável e evanescente são nossos sentimentos, para depois assim, com efeito, tentar destruir a Religião?

Há certamente nos dias de hoje [1872] uma aliança do mal mobilizando suas tropas nos quatro cantos do mundo; organizando-se, tomando medidas, cercando a Igreja de Cristo numa rede e preparando o caminho para uma apostasia geral. Se essa apostasia engendrará o Anticristo, ou se ele ainda será adiado — como fora anteriormente —, não podemos saber; mas de qualquer forma, essa apostasia, com seus sinais e agentes, advém do Mal e cheira à morte. Longe de qualquer um de nós ser um daqueles simples sujeitos que serão enlaçados naquela rede que nos cerca! Longe de qualquer um de nós ser seduzido pelas belas promessas que carregarão o veneno oculto de Satanás! Vocês pensam que ele seria tão inábil no seu engano a ponto de pedir aberta e francamente que vocês entrem na guerra contra a Verdade? Não. Ele oferece uma armadilha para tentá-los. Ele promete liberdade civil, igualdade, comércio, riquezas, redução de impostos e reformas. É assim que ele esconde de vocês o tipo de obra a qual ele os está colocando para trabalhar; ele os tenta para que vocês se revoltem contra seus governantes e superiores; ele mesmo faz isso e os induz a imitá-lo; ou então ele promete iluminação — ele oferece conhecimento, ciência, filosofia e abertura da mente. Ele zomba do passado; ele zomba de todas as instituições que reverenciam o passado. Ele te inspira a dizer algo e depois ouve, dando louvores e encorajamentos. Ele te coloca nas alturas; mostra como tornar-se como os deuses. Então ele ri e faz brincadeiras com você e torna-se seu íntimo; ele toma sua mão e cruza os dedos dele com os seus, e te agarra. Enfim, você passa a pertencer a ele.

Nós cristãos deveríamos permitir-nos ter uma grande ou pequena participação nisso? Deveríamos, mesmo com nosso dedo mindinho, ajudar o Mistério da Iniquidade, que já está em trabalho de parto e agita a terra com suas dores? “Que a minha alma não tenha parte nos seus conselhos. E que a minha alma não se una aos seus conluios.” [Gen. 49:6];” Não vos sujeiteis ao mesmo jugo que os infiéis. Pois, que união pode haver entre a justiça e a iniqüidade? Ou que sociedade entre a luz e as trevas?” [2Co 6:14]. Que não estejamos em conluio com os inimigos de Deus e nem aplainemos o caminho para o homem do pecado, o filho da perdição