A LEI ANTIGA E A LEI EVANGÉLICA SEGUNDO O VATICANO II E SEGUNDO A TRADIÇÃO CATÓLICA – PARTE IV (FINAL)

Fonte: Sì Sì No No – Tradução: Dominus Est

A Nova Lei cumpre a Antiga, porque cumpre tudo que a Lei Antiga prometia e realiza suas figuras (S. Th., I-II, q. 107, a. 2)

Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou: “Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas; não vim (para os) abolir, mas sim (para os) cumprir” (Mt. V, 17). Santo Tomás explica que por tal afirmação a Nova Lei está para a Antiga como o perfeito para o imperfeito. Agora, o que é perfeito completa o que está faltando no imperfeito. Nesse sentido, a Nova Lei completa a Antiga, pois preenche aquilo que faltava à Antiga. Ora, na Lei Antiga duas coisas podem ser consideradas:

1°) o fim, que é tornar os homens justos e virtuosos para que possam obter a Bem-aventurança (e este é o objetivo de toda lei). Portanto, a finalidade da Lei Antiga era a santificação dos homens, que, no entanto, excede as capacidades da Lei mosaica, enquanto a Lei Evangélica aperfeiçoa e cumpre a Lei Antiga, porque justifica em virtude da Paixão de Cristo. São Paulo, inspirado por Deus, escreve: “O que era impossível à Lei [Antiga], porque se achava sem força por causa da carne, Deus o realizou, enviando seu Filho em carne semelhante à do pecado, por causa do pecado condenou o pecado na carne, para que a justiça prescrita pela Lei [Nova] fosse cumprida em nós” (Rom. VIII, 3). Por este lado, a Nova Lei dá aquilo que a Antiga Lei apenas prometia e ainda não podia conferir: a graça do Espírito Santo pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo;

2°) os preceitos que Cristo cumpriu com sua obra e doutrina. Com a obra sendo circuncidado e observando todas as práticas legais até então em vigor. Com seus ensinamentos completou a Lei Antiga de três maneiras: a) explicando seu verdadeiro “significado” (o “espírito” que vivifica); isso fica claro quanto ao assassinato e adultério, para dar um exemplo; segundo os escribas e fariseus, com efeito, bastava não cometer o ato externo para não pecar, mas esse não era o verdadeiro sentido da Lei Antiga e Jesus Cristo lembra disso ensinando que mesmo o único ato interno, o pensamento consentido, já é pecado para a Lei de Moisés, então distorcida pela lei rabínica; b) indicando uma forma mais eficaz e segura de observar as regras da Lei Antiga. Por exemplo, a Lei Antiga ordenava o não perjúrio e Nosso Senhor nos ensina que para ter mais certeza de observar este preceito (que Ele não veio abolir), devemos abster-nos completamente de jurar, exceto em casos de necessidade (por exemplo, no Tribunal); c) acrescentando à Lei Antiga alguns conselhos de perfeição que facilitem o cumprimento dos Dez Mandamentos. Portanto, a Nova Lei abole a observância da Antiga Lei apenas em seus preceitos cerimoniais, que prefiguravam o Cristo vindouro (ad 1um), mas não em seus preceitos morais, que são completados nas três maneiras mencionadas acima, e portanto não foram ab-rogados.

À objeção de que Nosso Senhor na Nova Lei deu preceitos contrários aos da Antiga Lei, por exemplo. “Também foi dito: «Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe libelo de repúdio (Dt. 24,1)». Eu, porém, digo-vos: todo aquele que repudiar sua mulher, a não ser por causa de fornicação, expõe-na ao adultério” (Mt. V, 27-31) e, portanto, não podendo o contrário de uma coisa ser o seu cumprimento, e que por isso a Nova Lei não é o cumprimento da Antiga, responde Angélico (ad 2um) que estes preceitos do Senhor não são contrários aos da Lei Antiga e cita Santo Agostinho: “O que o Senhor preceituou a respeito de não repudiar a mulher não é contrário ao que a Lei preceituou. Nem, com efeito, diz a Lei: Aquele que quiser, repudie a esposa; a isso seria contrário não repudiar. Entretanto, como não queria que a esposa fosse repudiada pelo homem, ele interpôs essa demora, para que o ânimo pressuroso pelo dissídio, vencido pela redação do libelo, se abstivesse. Donde o Senhor, para confirmar que a esposa não fosse repudiada facilmente, excetuou apenas a causa de fornicação” (1 De Serm. Dom. in Monte, cap. 14). Portanto, não há oposição de oposição entre o preceito do Antigo Testamento e o do Novo.

Quanto à lei do talião “olho por olho, dente por dente”, a Lei Antiga ordenava não exagerar na defesa, ou seja, se o inimigo te deixar cego de um olho, você também pode privá-lo de um olho, mas não ambos ou matá-lo; Nosso Senhor torna mais fácil evitar reações exageradas, exortando-nos a abster-nos de qualquer vingança. “A propósito do talião [S. Mateus cap. V] ensinou que a intenção da lei não era de que se procurasse a pena de talião por causa da malignidade da vindita, que ele exclui, admoestando que o homem deve estar preparado também para sofrer as maiores injúrias, mas por causa do amor da justiça. O que ainda permanece na Lei Nova” (ad 4um). Para facilitar isso “Nosso Senhor Jesus Cristo, com três casos paradoxais, que não devem ser tomados literalmente, ensina seus discípulos a não responder ao mal com o mal, mas a vencer o mal com o bem” (F. SPADAFORA, Dizionario biblico, ed. Studium, Roma 1963, 3a ed., p. 583).

Portanto, não há oposição de contrariedade, como se o Antigo Testamento obrigasse a se vingar e não convidasse ao uso moderado da ‘iusta vindicatio’, que também é reconhecida na Lei do Novo Testamento (“vim vi repellere licet”) desde que em legítima defesa e que não haja ódio pessoal. Quando um servo de Caifás dá uma bofetada em Jesus, Ele não oferece a outra face, cumprindo literalmente o conselho que Ele mesmo havia dado (Mt. V, 39), mas lhe pergunta: “Se falei bem, por que me feres?” (Jo. XVIII, 23). Santo Tomás explica assim a aparente contradição entre esta cena e o ensinamento do Sermão da Montanha: “A Sagrada Escritura deve ser entendida de acordo com o que o próprio Cristo e os santos realizaram na prática. Cristo não deu a outra face para aquele sujeito. Assim, uma explicação literal interpreta mal o ensino de dar a outra face. Este ensinamento pretende falar antes da prontidão de ânimo para suportar algo semelhante ou mais difícil do que um tapa na cara, se necessário, sem nenhum ódio excessivo ao agressor” (In Joh., XVIII, lect. 4, 2). Portanto, a legítima defesa não é proibida e não nos é ordenado oferecer a outra face sempre e a qualquer custo, mas nos é dito para não exagerar na reação e, acima de tudo, para não trazer ódio e ressentimento ao inimigo que às vezes temos que lutar. Aristóteles também ensina que “a ira ajuda o forte” (3Etica, cap. 8, lect. 17). E Santo Tomás acrescenta que a ira dos virtuosos deve ser moderada pela razão. Com efeito, a raiva moderada está sujeita ao comando da razão e, portanto, o homem pode usá-la como quiser, desde que essa ira não saia do controle. Portanto, a raiva deve seguir a escolha da vontade e não precedê-la (S. Th., IIII, q. 123, a. 10).

Nosso Senhor Jesus Cristo no Templo, inflamado pela santa ira, expulsou os mercadores com golpes de chicote. O Venerável Serafino Capponi de Porretta, comentando o referido artigo do Angélico, escreve: «Foi justamente insinuado pela Sagrada Escritura, pela Igreja e por Aristóteles que o forte se serve da ira em seu próprio ato. Aristóteles já foi mencionado no ‘sed contra’. A Sagrada Escritura, em Êxodo XXXII, nos diz que: [Quando Moisés voltou], ao ver o bezerro e as danças, irou-se muito, atirou das suas mãos as tábuas e quebrou-as ao pé do monte” e narra imediatamente o grande ato de fortaleza realizado por Moisés, que, para vingar a ofensa de Deus, matou milhares de pessoas. Além disso, no primeiro livro dos Macabeus cap. II é narrado: “Viu-o Matatia [o judeu que estava se preparando para sacrificar aos ídolos] e ficou abrasado de zelo: as suas entranhas comoveram-se, inflamou-se o seu furor segundo a Lei, e, arremetendo contra ele, matou-o sobre o altar”. … A Igreja ensina a mesma coisa, colocando na boca de Santa Ágata, no ofício de sua festa, as seguintes palavras dirigidas a Décio: “Tirano mau, cruel e feroz, não tens vergonha de amputar isso em uma mulher, aquilo que, como eu, você mesmo sugou em sua mãe?”» (in hoc articulo)

Quanto ao ódio aos inimigos, Nosso Senhor quis corrigir a falsa interpretação rabínica que o considerava lícito, exortando-nos a não odiar com ódio de malevolência (homem enquanto homem), mas só de inimizade (homem enquanto pecador), ou seja, odiar o pecado e rezar pela conversão do pecador.

À terceira objeção, segundo a qual quem age contra a Lei não a cumpre, e Jesus Cristo teria agido contra a Lei Antiga porque tocou num leproso, coisa proibida pela Lei, e violou várias vezes o sábado, o Aquinate responde que o contato com leprosos foi proibido porque o homem contraía nele uma espécie de irregularidade (higiênico-sanitária). Mas o Senhor que curava os leprosos não podia contrair lepra. Quanto à aparente violação do sábado, não se pode dizer que Nosso Senhor realmente violou o sábado com as obras que realizou naquele dia, seja porque fez milagres com o poder divino, que opera continuamente no mundo mesmo no sábado, seja porque Ele realizou obras necessárias para a salvação dos homens. Os próprios fariseus no sábado tiveram o cuidado de salvar sua jumenta que havia caído no poço. Parecia, portanto, que Nosso Senhor violou o sábado apenas de acordo com a interpretação supersticiosa dos fariseus, que acreditavam que no sábado também se deveria abster das obras necessárias para a salvação do homem, mas não de salvar o próprio jumento! O que era contrário ao verdadeiro “sentido” (o “espírito”) da Lei: “A letra mata, mas espírito vivifica”!

A Nova Lei estava contida na Antiga, como a árvore está contida na semente (S. Th., I-II, q. 107, a. 3)

Uma coisa pode estar contida em outra de duas maneiras: ou de maneira atual, como um corpo está em um lugar; ou de maneira virtual, como o efeito está contido em sua causa ou como a perfeição está contida em uma coisa imperfeita (a semente contém a árvore). Ora, a Lei Nova está contida na Antiga como coisa perfeita na imperfeita. É por isso que São João Crisóstomo diz que “primeiramente a terra produz a erva (a Lei natural); depois as espigas (a Lei de Moisés) e depois o trigo perfeito (o Evangelho)” (In Mc., IV, 28). Por isso, a Lei Nova está contida na Antiga como o trigo na espiga. Todos os dogmas que o Novo Testamento propõe a se crer clara e explicitamente também são ensinados no Antigo Testamento de forma implícita e figurada. Mesmo do ponto de vista dogmático, a Lei do Novo Testamento está virtualmente contida na Lei do Antigo Testamento.

A Lei Antiga era mais pesada pelo número de preceitos externos, mas a Lei Nova, porque também diz respeito ao interior, é difícil para quem não ama, mas é leve para os virtuosos (S. Th., I-II, q. 107, a. 4)

Santo Tomás observa que nas ações virtuosas existem dois tipos de dificuldades. A primeira deriva das obras externas, que por si mesmas apresentam certa dificuldade e gravidade. E quanto a isso, a Lei Antiga é muito mais pesada que a nova, pois obrigava um número maior de atos externos devido à complexidade das cerimônias. O segundo tipo de dificuldade das boas ações deriva das disposições interiores com as quais devem ser realizadas. Quanto a isso, os preceitos da Lei Nova são mais difíceis que os da Lei Antiga, pois na Nova Lei também são expressamente proibidos os movimentos da alma, que não eram explicitamente proibidos na Antiga, embora em alguns casos os movimentos internos também foram proibidos. Ora, fazer isso sem o hábito da virtude que nos faz agir bem com presteza, facilidade e prazer é coisa muito difícil. É por isso que os mandamentos não são pesados ​​para os virtuosos, mas são difíceis para quem não ama, ou seja, para quem não tem o hábito da virtude. De fato, lemos: “Vinde a mim todos os que estais fatigados e carregados, e eu vos aliviarei” (Mt., XI, 28). E Santo Hilário explica: “Ele [Cristo] chama para si aqueles que estão cansados ​​e oprimidos pelos pecados do mundo” (In Matth., Cap. XI) e aplica as seguintes palavras à Lei do Evangelho: “Porque o meu jugo é suave, e o meu peso leve”. Portanto, a Lei Nova é em si mesma mais leve que a Antiga.

Conclusão: Jesus Cristo pregou aos judeus sem medo de bater de frente com eles (S. Th., III, q. 42, a. 2)

O Profeta havia predito que Cristo seria uma pedra de tropeço para as duas casas de Israel (Is. VIII, 14). Ora, como a salvação do povo deve ser preferida à paz de qualquer indivíduo ou família em particular, quando há homens que por sua maldade impedem a salvação da multidão, aquele que prega não deve ter medo de ofendê-los por estar proporcionando a salvação do povo.

Os escribas e fariseus eram um grande obstáculo para a salvação do povo, tanto porque eram inimigos da doutrina de Cristo, que era o único meio de salvação, quanto porque corrompiam a vida do povo com seus costumes depravados. Portanto, o Senhor, sem medo de ofendê-los, ensinou publicamente a verdade que eles os odiavam e os repreendeu por seus vícios. Assim também nós, se realmente queremos o bem dos judeus incrédulos, devemos pregar a verdade como Jesus Cristo a pregou e como a Igreja – por meio de seus Doutores – a propõe que se creia. Com efeito, São Gregório ensina que “Se o escândalo vem da verdade, é necessário aturar o escândalo em vez de abandonar a verdade” (Homil. VII em Ez.).

Depois de ter estudado estes dois tratados (sobre a Lei Antiga e sobre a Lei Nova) da Suma Teológica, não podemos deixar de exclamar com Leão XIII: “cada artigo [da Suma Teológica] é um milagre”. “Se ousássemos – escreve Padre Pègues O.P. – diríamos que este tratado da Lei Antiga e da Lei Nova formam em certo sentido a parte mais teológica da Suma” (T. PÈGUES, Commentaire français Litteral de la Somme Théologique, Toulouse-Paris, 1914, tome IX, p. 160).

Que estas verdades da Tradição Católica, expostas com tanta luz e precisão pelo Angélico, possam iluminar aqueles que ainda persistem em não reconhecer Cristo e nos encorajar a estudar e tratar o problema judaico à luz da sã teologia, sem a falsa prudência da carne, que dilui a verdade ou a nega, como aconteceu com a reviravolta conciliar e pós-conciliar.

Fim.

Crispinus