A LIBERDADE RELIGIOSA DO VATICANO II – PARTE 1

Resultado de imagem para marcel lefebvreDe acordo com o Vaticano II a pessoa humana teria direito em nome de sua dignidade, a não ser impedida no culto religioso, qualquer   que ele fosse, em particular ou em público, salvo se prejudicasse a tranqüilidade ou a moralidade pública193. Reconheçam que a moralidade pública do Estado “pluralista” promovida pelo Concílio não é do tipo a causar dano a esta liberdade, como também a corrupção avançada da sociedade liberal não limitaria o direito à liberdade do “concubinato” se fosse proclamado indistintamente, em nome da dignidade humana, para casais em união livre ou casados.

Assim pois, muçulmanos, rezai tranqüilamente no meio de nossas ruas cristãs, construí vossas mesquitas e minaretes junto aos campanários de nossas igrejas, a Igreja do Vaticano II vos assegura que não o podemos impedir194; o mesmo para vocês budistas e hindus…!

Em troca, nós católicos pediremos a liberdade religiosa em vossos países, em nome da liberdade que damos nos nossos… Poderemos assim defender nossos direitos religiosos ante os regimes  comunistas, em nome de um princípio declarado por uma assembléia religiosa tão solene e já reconhecida pela O.N.U. e pela maçonaria… É a declaração que me fez o Papa João Paulo II, na audiência que concedeu em 18 de novembro de 1978: “O senhor sabe, me disse, a liberdade religiosa nos foi muito útil contra o comunismo na Polônia”. Eu tinha vontade de contestar: “Muito útil pode ser como argumento  “ad  hominem”,  já  que  os  regimes  comunistas  têm   a liberdade de culto inscrita em suas constituições195, mas não como princípio doutrinal da Igreja Católica”.

I 

Liberdade Religiosa e Verdade 

Era isto ao menos, o que dizia o P. Garrigou-Lagrange:

“Nós podemos (…) fazer da liberdade de culto um argumento ‘ad hominem’ contra aqueles que, enquanto proclamam a liberdade de culto, perseguem a Igreja (Estados laicos e socializantes), ou impedem o culto direta e indiretamente (Estados comunistas, islâmicos, etc.). Este argumento ‘ad hominem’ é justo e a Igreja não o despreza, usando-o para defender eficazmente o direito de sua liberdade. Mas não se segue que a liberdade de culto, considerada em si mesma, seja sustentada pelos católicos como um princípio, porque ela é em si absurda e ímpia; com efeito, a verdade e o erro não podem ter os mesmos direitos”196.

Gosto de repetir: só a verdade tem direitos, o erro não tem nenhum direito, é o ensinamento da Igreja:

Escreve Leão XIII: “O direito é uma faculdade moral, e como temos dito e não cansamos e repetir, seria um absurdo crer que ele pertence naturalmente e sem distinção nem discernimento à verdade e à mentira, ao bem e ao mal. A verdade, o bem, tem o direito de ser propagado no Estado com uma liberdade prudente, para que um maior número possa se beneficiar; mas as doutrinas enganosas, a peste fatal do espírito (…), é justo que o poder público empregue seu poder para reprimi-las, a fim de impedir que o mal se estenda para ruína da sociedade”197.

Fica claro que as doutrinas e os cultos das religiões falsas, não têm nenhum direito para se expressar e propagar livremente. Para contornar esta verdade de La Palice198, objetaram no Concílio que a verdade ou o erro não têm nenhum direito, são as pessoas que têm os direitos, elas são o “sujeito do direito”. Assim tentavam desviar o problema, pondo-o em um nível puramente subjetivo e esperando deste modo poder fazer abstração da verdade. Mas este intento foi em vão, como demonstrarei a seguir, situando-me na própria problemática do Concílio.

A liberdade religiosa posta em nível subjetivo de “sujeito de  direito”,  daria  o  mesmo  direito  àqueles  que  aderem  à  verdade religiosa e àqueles que estão no erro. É concebível semelhante direito? Em que se apóia o Concílio?

Os Direitos da Consciência?

No começo do Concílio alguns quiseram basear a liberdade religiosa nos direitos de consciência: “A liberdade religiosa seria vã, se os homens não pudessem demonstrar os imperativos de sua consciência em atos exteriores, declarou Mon. De Smedt em seu discurso introdutório (“Documentation Catholique”, 5 de janeiro de 1964,  col. 74-75). O argumento era o seguinte: cada um tem o dever de seguir sua consciência, pois ela é para cada um, a regra imediata de ação. Mas isto vale não somente para uma consciência invencivelmente errada, em particular a de numerosos adeptos das falsas religiões; assim eles têm o dever de seguir sua consciência, e deve-se dar a eles a liberdade de segui-la e de exercer seu culto.

O disparate deste raciocínio ficou logo evidente e tiveram que se contentar em fazer fogo com outra madeira. Com efeito o erro involuntário, ou seja, sem culpa, desculpa toda falta moral, mas não por isto passa a ser uma ação boa199 e portanto não dá nenhum  direito a seu autor. O direito só pode se firmar sobre a norma  objetiva da lei, e em primeiro lugar sobre a lei divina que regula a maneira como Deus quer ser honrado pelos homens. 

A Dignidade da Pessoa Humana? 

Por não oferecer a consciência um fundamento suficientemente objetivo, julgaram encontrar um na dignidade da pessoa humana. “O Concílio do Vaticano declara (…) que o direito à liberdade religiosa tem seu fundamento na própria dignidade da pessoa humana” (DH. 2). Esta dignidade consiste em que o homem, dotado de inteligência e de livre arbítrio, está por sua própria natureza preparado para conhecer a Deus, o que não poderá conseguir se não for deixado livre200. O argumento é este: o homem é livre, portanto deve ser deixado livre. Ou ainda: o homem é dotado de livre arbítrio, portanto tem direito à liberdade de ação. Vocês já conhecem o princípio absurdo de todo liberalismo, como o chama o Cardeal Billot. É um sofisma: o livre arbítrio se situa no terreno do SER, a liberdade  moral e a liberdade de ação se situam no plano do AGIR. Uma coisa é o que Pedro é por natureza e outra é o que ele chega a ser (bom ou mau, na verdade ou no erro) mediante seus atos. A dignidade humana radical é por certo a de uma natureza inteligente, capaz portanto de uma escolha pessoal, mas sua dignidade terminal (final) consiste em aderir, em ato, à verdade e ao bem. É esta dignidade terminal que dá a cada um a liberdade moral (faculdade de agir) e a liberdade de ação (faculdade de não ser impedido de agir). Mas na medida em que o homem adere ao erro ou se apega ao mal, perde sua dignidade terminal ou não a alcança e já não pode firmar-se sobre ela. Isto é o que ensinava magnificamente Leão XIII nos textos escondidos pelo Vaticano II. Falando sobre as falsas liberdades modernas, escreveu Leão XIII na “Immortale Dei”:

“Se a inteligência adere às idéias falsas, e se a vontade escolhe o mal e se une a ele, nem uma nem outra alcançam a perfeição, ambas perdem sua dignidade inicial e se corrompem. Por isso não é permitido vir à luz e mostrar aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e à verdade, e muito menos colocar isto sob a tutela da proteção das leis”201.

E em “Libertas”, explica o mesmo Papa em que consiste a  verdadeira liberdade religiosa e em que deve-se fundar:

“Outra liberdade que se proclama muito alto, é a liberdade que chamam de liberdade de consciência; e entende-se com isso que cada um pode indiferentemente, a seu gosto, dar ou não culto a Deus. Os argumentos apresentados antes, bastam para refutar202.

Mas ela também pode ser entendida no sentido de que o homem tem no Estado o direito de seguir, e acordo com a consciência de seu dever, a vontade de Deus, cumprir seus preceitos203, sem que alguém possa impedi-lo. Esta liberdade,  a verdadeiramente digna dos filhos de Deus, que protege tão gloriosamente a dignidade da pessoa humana, está cima de toda violência e de toda opressão, ela foi sempre objeto dos desejos da Igreja e de seu particular afeto”204.

Para uma verdadeira dignidade, verdadeira liberdade religiosa; para uma falsa dignidade, falsa liberdade religiosa! 

A Liberdade Religiosa, Direito Universal à Tolerância? 

O Pe. Ph. André Vincent que se interessava muito pelo assunto, me escreveu um dia para pôr-me em guarda: atenção, me dizia, o Concílio não reclama o direito “afirmativo” de exercer seu culto para os adeptos das falsas religiões, mas somente o direito “negativo” de não serem impedidos no exercício público ou particular de seu culto. Definitivamente o Vaticano não fez mais do que generalizar a doutrina clássica da tolerância.

Com efeito, quando um Estado católico, por motivo da paz civil,  para cooperação de todos ao bem comum, ou de um modo geral para evitar um mal maior, julga que deve tolerar o exercício deste ou daquele culto, pode então “fechar os olhos” por uma tolerância de fato, não tomando nenhuma medida coercitiva a seu respeito; inclusive dar a seus adeptos o direito civil de não serem molestados no exercício de seu culto. Neste último caso, trata-se de um direito puramente negativo. Por outro lado os Papas não deixam de afirmar que a tolerância civil não concede nenhum direito “afirmativo” aos dissidentes, nenhum direito de exercer seu culto, pois semelhante direito afirmativo só pode se firmar sobre a verdade do culto considerado:

“Se as circunstâncias o exigem, pode-se tolerar desvios na regra,  quando  são  introduzidos  tendo  em  vista  evitar malesmaiores, sem contudo elevá-los à dignidade de direito, contra as eternas leis da justiça” 205.

“Embora não dando direitos senão àquilo que é verdadeiro e honesto, a Igreja não se opõe à tolerância que o poder público acha que tem que usar a respeito de certas coisas contrárias à verdade e à justiça, tendo em vista evitar mal maior ou procurar conservar um bem maior”206.

“Qualquer que seja seu caráter religioso, nenhum Estado ou comunidade de Estados, pode dar um mandato positivo ou  uma autorização positiva (15) de ensinar ou fazer o que seja contrário à verdade religiosa ou ao bem moral (…).

Outra coisa essencialmente diferente, é o que se formula nesta pergunta: em uma comunidade pode-se, pelo menos em determinadas circunstâncias, estabelecer que a norma do livre exercício de uma crença ou de uma prática religiosa em vigor em um Estado membro não seja impedida em todo o território da comunidade por meio de leis coercitivas de Estado?207. O Papa responde afirmativamente: “sim, em certas circunstâncias tal norma pode ser estabelecida”.

O P. Baucher resume muito bem esta doutrina. Ele escreve: “Decretando a tolerância considera-se que o legislador não quer criar em benefício dos dissidentes, o direito à faculdade moral de   exercerseu culto, mas somente o direito de não serem perturbados no exercício deste culto. Sem nunca ter o direito de agir mal, quando uma justa lei por motivos suficientes, impede tal impedimento”208.

Mas acrescenta para esclarecer: é diferente o direito civil à tolerância, quando está garantido por lei tendo em vista o bem comum de alguma nação em determinadas circunstâncias, do pretendido direito natural e inviolável à tolerância para todos os adeptos de todas as religiões, por princípios e em qualquer circunstância.

De fato, o direito civil à tolerância, mesmo se as circunstâncias que o legitimam se multiplicam hoje em dia, continua estritamente relativo às ditas circunstâncias.

Escreve Leão XIII: “A tolerância ao mal, pertence aos princípios da prudência política e deve ser rigorosamente limitada pelos limites exigidos por sua razão de ser, ou seja do bem público. Portanto se ela for prejudicial, ou se for para o Estado causa de um mal maior, como conseqüência não será permitido usar dela, uma vez que nestas condições falta  a razão do bem maior”209.

Teria sido muito difícil ao Vaticano II proclamar um direito natural e universal à tolerância, apoiando-se nos atos do Magistério anterior.  E também evitaram cuidadosamente a palavra “tolerância” que parecia muito negativa, pois o que se tolera é sempre um mal; em troca procurou-se destacar os valores positivos de todas as religiões210.

Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre

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193 Cf. “Dignitatis Humanae, nº 2.

194 Na Europa, a religião islâmica invade todos os redutos católicos. Aqui  no Brasil diríamos: “Assim pois seitas protestantes, construí vossos templos ao   lado do campanário de nossas igrejas, enchei os estádios de multidões para lhes  arrancar dinheiro…” (N. do T.).

195 Juntamente com o direito de propaganda anti-religiosa.

196 Cf. Reginald Garrigou-Lagrange O.P., “De Revelatione” T.2, pág. 451, oitava objeção. Ferrari y Gabalda, ed. 1921.

197 Encíclica “Libertas”, PIN. 207.

198 La Palisse ou La Palice, gentil homem francês morto na batalha de Pavia em 1525. Esta expressão equivale a uma verdade evidente (N. do T.).

199 Santo Tomás, I-II, XIX, 6 e ad 1m

200 Cf. “Dignitatis Humanae”, nº 2

201 PIN. 149.

202 Trata-se do indiferentismo religioso do indivíduo.

203 Evidentemente trata-se, falando de modo concreto, dos preceitos da verdadeira Religião.

204 PIN. 215.

205 Pio IX, carta “Dum Civilis Societas” de 1 de janeiro de 1875 para M. Charles Perrin.

206 Leão XIII, “Libertas” PIN. 219.

207 Pio XII, alocução “Ci riesco” aos juristas italianos em 6 de dezembro de 1953

208 D.T.C., T. IX, col. 701, artigo “Liberte”.

209 “Libertas”, PIN. 221.

210 Sobre estes valores, cf. cap. XXVI.