A MISSA DE SÃO PIO V, A MISSA DE PAULO VI E OS CONSERVADORES

gleize

POR UMA VERDADEIRA COMPAIXÃO

A situação dos ritos de São Pio V e Paulo VI é descrita no recente Motu proprio Traditionis Custodes: uma coabitação impossível no nível dos princípios litúrgicos.

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

1 – Com o recente Motu proprio Traditionis custodes de 16 de julho, o Papa Francisco estabelece que “os livros litúrgicos promulgados pelos “Santos” Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano

2 – As diversas reações não tardaram a surgir do movimento Ecclesia Dei. Sem dúvida, a situação de todos aqueles que, por estarem ligados à liturgia tradicional, não quiseram seguir Mons. Lefebvre e a Fraternidade São Pio X em um suposto “cisma” ou pelo menos em uma igualmente suposta “desobediência”, corre o risco de se tornar muito problemática. Isto é muito angustiante aos olhos de todos aqueles cuja consideração se limita ao bem pessoal dos membros do referido movimento – ou, ao menos, sob o aspecto das consequências práticas imediatas. O exemplo do Superior do Distrito da França da Fraternidade São Pedro é característico a esse respeito, quando ele vê no Motu proprio do Papa Francisco um texto “ofensivo”, que retribui mal os esforços de “obediência” desenvolvidos até agora, chegando ao ponto de dizer que “a Fraternidade São Pio X é finalmente tratada melhor do que nós“.

3 – Mostrando ser angustiante em seus efeitos e prejudicial para as pessoas, a iniciativa do Papa não é, entretanto, surpreendente. É até mesmo lógica. E podemos nos perguntar se tal situação não seria inevitável. Pois a situação dos dois ritos, o de São Pio V e o de Paulo VI, é justamente a descrita no recente Motu proprio Traditionis custodes: situação de uma coabitação impossível no nível dos princípios litúrgicos. Além das situações de fato e do estado infinitamente variável – pacífico ou conflituoso – dos indivíduos, há, fundamentalmente, uma oposição formal de doutrina entre a Missa de São Pio V e o novo rito de Paulo VI. Pois a liturgia é um lugar teológico[1].

A lacuna que opõe as duas liturgias corresponde a um abismo que separa duas concepções de Igreja e de fé. A extensão desta discrepância pode ser medida pela força com que a maioria dos episcopados, conscientes de sua adesão ao Vaticano II, se opuseram à iniciativa do Motu proprio Summorum pontificum: Mesmo que o rito tradicional da Igreja não pretendesse, na intenção de Bento XVI, excluir o novo rito , sua expansão foi, muitas vezes, mal compreendida. E é precisamente porque, além de uma não incompatibilidade puramente jurídica, existirá sempre entre as duas liturgias uma incompatibilidade doutrinária. As boas intenções de um Papa conservador, como Bento XVI, são semelhantes as de um liberal: ambas alimentam a ilusão de dar o mesmo direito à verdade e ao erro. Mas as intenções de um Papa de vanguarda, como Francisco, são muito distintas: a única expressão da lex orandi só pode ser em sua mente o Novus Ordo Missae, excluindo da Missa tradicional. E nisso Francisco é muito mais lógico do que Bento XVI com o adágio de que é a lei da fé que está na base da lei da oração, lex orandi, lex credendi. Se a nova crença é a do Concílio Vaticano II, a nova liturgia que deve corresponder a ela só pode ser a da Nova Missa de Paulo VI, e não a da antiga Missa, que é a expressão de uma doutrina oposta – em mais de um ponto – à do Vaticano II.

4 – Isso significa claramente – entre outras consequências – que a Missa tradicional não pode ser objeto – nem para um verdadeiro católico ligado à Tradição, nem para um verdadeiro “conciliarista” ligado ao Vaticano II – de uma preferência pessoal ou de uma escolha motivada por sensibilidades particulares, sejam teológicas ou estéticas. Não “se prefere” a Missa tradicional à Missa Nova, como se a Missa Nova fosse tão somente menos boa ou menos agradável. De fato, o rito tradicional da Missa é a expressão completa e necessária da fé da Igreja, em oposição a um novo rito que (segundo as próprias palavras do Breve Exame Crítico) representa um afastamento impressionante, tanto em seu conjunto como nos detalhes. O rito tradicional é obrigatório a todo católico, e eles não podem se contentar em tratá-lo como objeto de preferência pessoal, por razões alheias à profissão de fé católica que não excluiriam a legitimidade e a bondade intrínseca do novo rito de Paulo VI.

5 – É inegável que, pelo Motu proprio de 7 de julho de 2007, Bento XVI quis ampliar a possibilidade de celebrar a antiga liturgia, e que essa ampliação não teve precedentes desde 1969. Mas esse Papa, por ser apenas conservador, não chegou ao ponto de apontar o rito tradicional a expressão necessária, ordinária e comum da lei da oração; a expressão ordinária desta lei permaneceu, de fato, a do Novus ordo missae de Paulo VI. Bento XVI queria apenas que a mesma “lex orandi” tivesse duas expressões, uma das quais (a da Missa de São Pio V) seria extraordinária em comparação com a outra (a da Missa Nova de Paulo VI). Bento XVI, portanto, introduziu na liturgia da Igreja o impossível dualismo de um bi-ritualismo, um dualismo impossível no nível dos princípios da liturgia, e é por isso que seu Motu proprio foi, em suma, nada além de um ato de um liberalismo tão impossível quanto ilusório, que não podia satisfazer nem a Fraternidade São Pio X nem os incondicionais apoiadores do Vaticano II, ambos apegados aos seus princípios. Ao contrário, os conservadores de diferentes tendências, entre eles os partidários do movimento Ecclesia Dei, viram em tal ato um meio providencial de conciliar seu apego à liturgia de São Pio V e sua submissão aos ensinamentos do Concílio Vaticano II. Mas agora a recente iniciativa de Francisco acaba de lembrá-los de que essa situação instável só foi possível para eles graças à iniciativa pessoal e, afinal, estratégica de um Papa conservador.

6 – Perante tudo isso, o católico digno desse nome deve ter uma verdadeira compaixão: verdadeira compaixão, que não só se entristece pela possibilidade da liturgia de São Pio V estar seriamente ameaçada para esses conservadores, mas muito mais entristecido pela mortal ilusão de que esses católicos correm o risco de permanecer prisioneiros: de acreditar na possibilidade de reconciliar a antiga liturgia e a adesão ao Concílio Vaticano II – ou uma suposta “obediência” à hierarquia atual. A todos eles, é importante deixar claro – com toda a caridade pastoral que deve animá-la – que do mesmo modo que a Missa de São Pio V, a Fraternidade São Pio X não representa, no estado atual da Igreja, uma mera opção – ou uma preferência oportuna e temporária.

7 – A iniciativa de Francisco poderia, desse modo, não somente dilatar nossos corações, mas também abrir nossos olhos.

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Ilustração: Mons. Olivier Leborgne, Bispo de Arras e vice-presidente da Conferência Episcopal Francesa (CEF), junto ao Pe. Alexis Garnier, sacerdote da Fraternidade Sacerdotal São Pedro (FSSP) durante a transmissão especial da KTO TV sobre o Motu proprio Traditionis Custodes, domingo, 18 de julho de 2021.

Notas de rodapé

  1. Confira o que Dom Jean-Pierre Longeat escreveu, pouco antes da publicação do Motu proprio de Bento XVI, “A Unidade da liturgia romana em questão”, no jornal La Croix da segunda-feira, 23 de outubro de 2006, p. 25: “O Ordo missae de 1969 concretiza em particular a teologia da constituição dogmática sobre a Igreja. A Lumen gentium apresenta a Igreja como Corpo Místico de Cristo e como Povo de Deus reunido em nome de Cristo. […] Querer encorajar, na Igreja latina, um retorno a outra ênfase teológica por extensão do Ordo de 1962, é gerar uma perturbação muito profunda no povo de Deus”.

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Seguem abaixo alguns textos já publicados aqui no blog sobre o assunto:

DO SUMMORUM PONTIFICUM A TRADITIONIS CUSTODES, OU DA RESERVA AO ZOOLÓGICO

É A MESMA MISSA TRIDENTINA? SIM, MAS NAO O MESMO COMBATE!

CATECISMO DAS VERDADES OPORTUNAS: OS “RALLIÉS”, VISTOS POR MONS. LEFEBVRE

A GRANDE LACUNA DOS CONSERVADORES

DEVE-SE TEMER UMA AMEAÇA À MISSA TRADICIONAL?

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