A PROTESTANTIZAÇÃO DO CONCÍLIO VATICANO II – PARTE 1

cviiConferência do Sr. Padre Franz SCHMIDBERGER no Simpósio de Teologia em Paris, outubro de 2005.

RESUMO DA POSIÇÃO PROTESTANTE

1 – O ponto de partida do protestantismo, sua base filosófica e teológica, é sem dúvida a concepção de Lutero acerca do pecado e da justificação.

Para ele, corrompeu o pecado totalmente a natureza humana, não há sequer liberdade moral. Assim, nada encontra a graça de Deus que curar, transformar, divinizar, limitando-se tão-só a uma declaração exterior: Deus encobre o pecado com o manto dos méritos de seu Filho, não imputando-lhe de pecado, contudo o pecador conserva sua natureza corrompida.

2 – De tal parecer do estado da natureza decaída, decorrem os quatrosoli de Lutero:

a)Sola fide: salva-se o homem só pela fé; notem que, entre os reformadores, concebe-se a fé enquanto fé confiante nos méritos do Cristo Redentor, e não enquanto plena aceitação da Revelação de Deus sob impulso da graça. As boas obras – o jejum, a oração, a esmola, a penitência, a mortificação – não contribuem para a salvação, antes são sinais de fé. Exprime Lutero desta forma seu pensamento de modo categórico: “Peca fortemenTe e crê mais fortemente ainda, e tu serás salvo”.

b)Sola gratia: com sua natureza sem liberdade moral, o homem pe radicalmente incapaz de contribuir à salvação; Deus obra sozinho, o homem permanece passivo.

c)Solus Deus: opera Deus sozinho nossa salvação; não há mediação da Igreja, do magistério ou do sacerdócio, menos ainda intercessão dos santos, por exemplo o da Santíssima Virgem. Se o homem não diligencia para sua própria salvação, como poderia obrar para a do próximo?

d)Sola scriptura: porque é impossível um magistério que exponha a Revelação de Deus, não pode existir Tradição como fonte da Revelação; porque Deus faz tudo, ilumina diretamente a alma dos crentes para que possam compreender a Santa Escritura, que contém toda a Revelação. 

Destes quatro soli decorre o sistema protestante:

a)A estrutura da Igreja: Não constitui um corpo vivo a dar a salvação às almas, mas não passa de um serviço de caridade cuja hierarquia dá ensanchas à uma democratização: todos somos povo de Deus, o sacerdócio ministerial absorve-se no sacerdócio geral dos fiéis.

b)A fé e seu conteúdo;axiomas filosóficos. A Igreja e os santos, em particular a Santíssima Virgem Maria, devem dar lugar a um falso cristocentrismo. Por um lado, cada fiel pode ler a Santa Escritura e interpretá-la sob inspiração do Espírito Santo; por outro lado, depara-se com uma multidão de diferentes confissões – a Igreja, enquanto única vida de salvação, há de ser substituida pela multidão das confissões e modalidades de fé, o magistério pelo trabalho dos teólogos, sob influxo da exegese liberal e da “Formengeschichte”.

Se não se encontra explícita na Santa Escritura uma tradição, ela não pode existir.

O livre exame deve substituir a lei da fé; força é abandonar a idéia do estado católico, pois que contradiz o livre arbítrio; decorre daí a exigência da liberdade religiosa.

A ordem objetiva cede lugar ao subjetivismo e ao individualismo, o bem comum à realização epssoal, i. é, ao personalismo.

A Igreja deve abandonar o poder temporal e a dominação; deve sobretudo abandonar o Estado Católico enquanto fato, pois que se opõe á propagação do protestantismo.

O laço harmonioso entre a natureza e a graça não se mantém. No protestantismo, existe uma oscilação entre, por um lado, o fideísmo (Karl Barth) e, por outro lado, o racionalismo (Bultmann) e o naturalismo com a laicisação da sociedade.

Há mister de abandonar a romanidade expressa na língua latina, o Romano Pontífice e a Cúria, orientando-se em direção a Igrejas nacionais.

Igualmente, há de se rejeitar a escolástica, sistema esclerosado oposto ao Evangelho vivo.

c)O culto: acento na palavra e na Eucaristia-refeição, abandono da idéia de sacrifício expiatório: a liturgia não é culto, é antes instrução e assunto de toda a comunidade.

Demais, há necessidade de retorno a formas de culto mais simples, abandonando o triunfalismo. 

PRESENÇA DOS PROTESTANTES NO CONCÍLIO VATICANO II

Era da responsabilidade do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, sob o cardeal Bea, preparar os convites para o Concílio às “Igrejas” não católicas, comunidades eclesiásticas, observadores e delegados, enviando os convites em nome do Papa1. Encontravam-se na primeira sessão do Concílio os seguintes representantes do protestantismo:

– Comundiade anglicana: 3 representantes;

– Aliança Mundial Luterana: 3 representantes;

– Aliança Mundial da Igreja Reformada, Igreja Presbiteriana: 3 representantes;

– Igreja Evangélica Alemã: 1 representante;

– Convenção Mundial das Igrejas de Cristo: 1 representante;

– Friend’s World Committee for Consultation (Quakers) : 1 representante;

– International Congregation Council: 2 representantes;

– Conselho Mundial Metodista: 3 representantes;

– Conselho Ecumênico das Igrejas de Genebra: 1 representante;

– Associação Internacional para o Cristianismo Liberal e a Liberdade Religiosa: 2 representantes;

Demais, participaram outros convidados do Secretariado para a Unidade: Roger Schutz, prior da comundiade protestante de Taizé e seu confrade Max Thurian; o Pr. Cullmann, da Universidade de Bâle e de Paris; o Pr. Berghauer, da Universidade Protestante de Amsterdan. Em suma, um total de 23 representantes.

Na carta-convite definem-se os estatutos e os papéis na forma seguinte:

a) “Os observadores fornecessem às Igrejas separadas de Roma informações sobre o Concílio;

b) Eles podem participar das sessões públicas e das sessões gerais fechadas, nas quais se discutem os decretos do Concílio; não participam das sessões das Comissões, salvo em casos particulares e com permissão especial;

c) Não têm direito à palavra nem ao voto;

d) O Secretariado para a Unidade dos Cristãos serve de intermediário entre os organismos do Concílio e os observadores para transmitir a estes as informações necessárias, a fim de que possam com mais facilidade e eficácia acompanhar os trabalhos do Concílio. Demais, organiza as entrevistas com pessoas de escol, por exemplo os padres do Concílio acerca dos temas ali discutidos.

Temos agora a presença viva dos protestantes. Já estavam presentes no Concílio de forma indireta por meio dos padres e teólogos que sabiam há muito cooptados a suas idéias, representando-os mais ou menos abertamente: os cardeais Bea, König, Frings, Döpfner, Liénart, Alfrink; especialistas como Rahner, Hans Küng, Edouard Schillebeeckx, Congar.

Alguns trechos das obras de Congar servem-nos de prova2:

“Em Saulchoir, tinham interesse por Lutero, de forma bem diferente da de Denifle ou Grisar. Durante uma segunda estada na Alemanha, visitei os lugares marcantes do luteranismo, os quais me atraiam”. Devota grande admiração ao reformador: “Lutero é dos maiores gênios religiosos de toda a história. Ponho-lhe neste quesito no mesmo patamar de Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino ou Pascal. De certo modo, é ele ainda maior. Repensou todo o cristianismo. Lutero fora um homem de Igreja.” Donde vem tal admiração por um homem cujo gênio era o de destruição? Vem de que Lutero “era incapaz de receber algo que não viesse de sua própria experiência.” […]

Citemos ainda o cardeal Ratzinger, grande admirador de Karl Barth. Em 1986, numa carta à Theologische Quartalsschrift, Tübingen, escrevera isto:

“ […] De várias maneiras, não se deve considerar um bem para a Igreja Católica, na Alemanha e fora dela, o fato de que a seus flancos existisse o protestantismo e sua liberdade e piedade, seus conflitos e a grande exigência espiritual?3

Anos mais tarde, ele concelebrará em Haburgo as vésperas com a Sra. Jespen, bispa protestante!