AS SAGRAÇÕES EPISCOPAIS DE 1988: O DILEMA ECCLESIA DEI

As sagrações de D. Lefebvre contra a vontade do Papa constituíram um ato cismático? Foram elas apenas uma desobediência a um preceito legítimo? Por falta das distinções necessárias, a argumentação Ecclesia Dei para afastar os fiéis da Fraternidade São Pio X conduz apenas a um dilema insustentável.

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

Essa é a continuação de duas partes anteriores:

PARTE 1: AS SAGRAÇÕES EPISCOPAIS DE 1988 PREJUDICARAM UM ELEMENTO ESSENCIAL DA FÉ CATÓLICA: A UNIDADE DA IGREJA?

PARTE 2: AS SAGRAÇÕES REALIZADAS POR D. LEFEBVRE EM 1988 REPRESENTAM UM ATO DE NATUREZA CISMÁTICA?

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1. Na segunda entrevista, na seção “teologia”, publicada na página de 27 de abril de 2022, do site “Claves.org”, o Pe. de Blignières menciona o estudo apresentado em 1983 a D. Lefebvre pelo Pe. Josef Bisig e retomado após as sagrações de 30 de junho de 1988, sob a forma de um folheto intitulado:  Da sagração episcopal contra a vontade do papa, Ensaio teológico coletivo dos membros da Fraternidade São Pedro(FSSP, Distrito da França, 5, Rue McDonald, 18000 Bourges). Este estudo tinha por finalidade, evidentemente, justificar a posição dos sacerdotes e dos fiéis que se recusaram a seguir D. Lefebvre em sua decisão de prosseguir com as sagrações episcopais contra a vontade do Papa.

2. O principal argumento apresentado por este estudo, e que aparece no parágrafo IV da primeira parte, é que as sagrações episcopais realizadas – não apenas sem a vontade do Papa, mas também e sobretudo contra a sua vontade expressa – são, em si mesmas ou intrinsecamente, um ato mau: “O problema das sagrações de 30 de junho é que elas são contra a vontade explícita daquele por quem toda a jurisdição é dada (principaliter) como a Cabeça visível da Igreja”(1). E este ato é mau, acrescenta o Pe. de Blignières, retomando a substância do estudo do Pe. Bisig, porque prejudica um elemento da fé católica, que é a necessária comunhão hierárquica com os outros bispos católicos, uma comunhão cujo garante é o Bispo de Roma. Mas esse atenta contra essa comunhão por si mesmo ou em seu efeito? É aqui que as inferências dos padres fundadores do movimento Ecclesia Dei podem parecer um pouco precipitadas.

Ato cismático em si mesmo ou desobediência que prepara para um cisma?

3. O Motu proprio Ecclesia Dei adflicta qualifica este ato como “cismático” não em si mesmo, mas em sua necessária consequência: “Em si mesmo [in semetipso] tal ato foi uma desobediência ao Romano Pontífice em matéria gravíssima e de importância capital para a unidade da Igreja, como é a ordenação dos bispos, mediante a qual é mantida sacramentalmente a sucessão apostólica. Por isso, tal desobediência ― que traz consigo [secum quae infert](2) uma rejeição prática [repudiatio] do primado do Bispo de Roma, produz como seu efeito [efficit](3) um ato cismático”. Assim, o texto autêntico da Santa Sé, em latim, distingue aqui claramente entre a natureza específica do ato (uma desobediência) e seu efeito (um cisma). Em suma: uma desobediência que levou ao cisma.

4. Por que essa consequência? Por que essa ligação de causa e efeito entre desobediência e cisma? O número 3 do Motu proprio Ecclesia Dei adflicta explica-o claramente: esta desobediência ao Papa ocorre “em matéria muito grave e de importância capital para a unidade da Igreja”. É, portanto, a matéria, isto é, o objeto circunstanciado, o objeto concreto e factual, sobre o qual se apoia a desobediência, que tem o cisma como consequência. Este objeto circunstancial consiste em recusar-se a levar em conta o preceito dado pelo Papa (que representa o objeto da desobediência na sua totalidade, o objeto que se encontra em qualquer ato de desobediência, seja ele qual for) precisamente quando se trata “a ordenação dos bispos, mediante a qual é mantida sacramentalmente a sucessão apostólica” (que representa o objeto circunstanciado do ato concreto e peculiar de desobediência imputado a D. Lefebvre).

5. Essas distinções são muito importantes, pois nos dão os meios para justificar a atitude de D. Lefebvre: distinção entre um ato de desobediência e a sua consequência por um lado, distinção entre esse mesmo ato de desobediência e sua matéria, por outro. Se os negarmos, ou pelo menos se os omitirmos muito rapidamente como o Pe. Bisig e o Pe. de Blignières parecem fazer, certamente há aqui uma oportunidade para desacreditar facilmente o ato de 30 de junho de 1988. Mas tal descrédito não pode ser justificado pela letra dos textos publicados por Roma.

6. A argumentação do Pe. Bisig, semelhante ao do Motu proprio Ecclesia Dei afflicta,é o seguinte. “Transmitir a sucessão apostólica contra a vontade do Papa é um ato cismático. Ora, as sagrações de 30 de junho de 1988 transmitiram a sucessão apostólica contra a vontade do Papa. É por isso que as sagrações de 30 de junho de 1988 constituem um ato cismático”.

Sucessão apostólica formal e sucessão apostólica material

7. A primeira proposição é indiscutível, desde que se compreenda exatamente o que é a “sucessão apostólica”: trata-se da sucessão no poder de governar a Igreja, o poder de jurisdição, que só o Papa pode dar. É costume entre os teólogos(4) fazer distinção entre uma sucessão apostólica material e uma sucessão apostólica formal. Tal distinção é claramente enunciada na Encíclica Ad apostolorum principis de Pio XII. A primeira é uma sucessão apostólica no sentido impróprio, onde apenas o poder de ordem válida persiste, mas sem que haja o poder de jurisdição. A segunda é propriedade exclusiva dos Bispos que sucedem aos apóstolos no poder de ordem e no poder de jurisdição. Transmitir a sucessão apostólica formal contra a vontade do Papa é um cisma; transmitir a sucessão apostólica material contra a vontade do Papa não é um cisma, mas um ato de desobediência. Acrescentemos que transmitir jurisdição contra a vontade do Papa é ir contra a lei divina e, portanto, nenhuma exceção, nenhum caso de necessidade pode legitimar tal transmissão. Por outro lado, transmitir o poder de ordem contra a vontade do Papa é ir contra a lei eclesiástica e, portanto, certas circunstâncias excepcionais podem legitimar esta transmissão, entre outras, devido a um caso de necessidade.

8. A segunda proposição é falsa se compreendida a partir da transmissão da sucessão formal, e é verdadeira se compreendida a partir da sucessão material. Se a segunda proposta for entendida neste último sentido, a conclusão de que as consagrações de 30 de junho constituíram um ato cismático não pode ser imposta. Com efeito, transmitir apenas a sucessão apostólica material contra a vontade do Papa não é um cisma. Uma vez que foi exatamente isso que aconteceu nas sagrações de Ecône, o argumento do Pe. Bisig não tem poder de conclusão.

Preceito legítimo e preceito ilegítimo

9. As sagrações de Ecône constituiriam uma desobediência? Tudo aqui depende do fundamento e da legitimidade do preceito insinuado por João Paulo II a D. Lefebvre(5). Se o estado de necessidade na Igreja é verdadeiro, e é verdade que a implementação do Vaticano II é seriamente prejudicial à salvação das almas, então o preceito de João Paulo II não é legítimo, porque se opõe ao preceito da autoridade de Deus Deus querendo que cada Bispo dê à Igreja os meios necessários para a salvação das almas, neste caso, uma sagração de Bispos isentos dos erros do Vaticano II. Ao realizar esta sagração, D. Lefebvre não cometeu nenhum ato de desobediência, mas, ao contrário, realizou o ato de obediência heróica à vontade divina. Por outro lado, se não for verificado o estado de necessidade na Igreja, e não for verificado que a implementação do Vaticano II não é gravemente prejudicial à salvação das almas, então o preceito de João Paulo II permanece legítimo e D. Lefebvre cometeu um gravíssimo ato de desobediência. Em suma, a argumentação do Pe. Bisig, bem como sua retomada pelo Pe. de Blignières, são levadas a negar o estado de necessidade e, para tanto, negar também a gravidade do dano causado pelo Vaticano II à salvação das almas.

10. O Pe. de Blignières encontra-se, assim, dividido entre os dois chifres do seu dilema. Ele é obrigado a minimizar a gravidade do dano causado às almas pela aplicação do Novus Ordo Missaede Paulo VI, se quiser retirar toda legitimidade da iniciativa de 30 de junho de 1988 e justificar a reprovação inscrita no Motu proprio Ecclesia Dei Adflicta, que é fundador do movimento de mesmo nome. E é precisamente esse minimalismo que é claramente exposto na terceira intervenção intitulada “Debates abertos sobre o verão de 1988”, na seção “teologia”, publicada na página em 28 de abril de 2022 do site “Claves.org”. Citando o juízo do Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae, nosso teólogo se apressa a comentar: “Mas cuidado! Este juízo é uma conclusão de teólogos que obviamente não pretende ter a autoridade de um texto do magistério. […] É assim formulado pelo Breve Exame Crítico: O Novo Ordo Missæ […] representa, tanto em seu todo como nos detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa tal qual formulada na sessão 22 do Concílio de Trento. Os “cânones” do rito definitivamente fixado naquele tempo constituíam uma barreira intransponível contra qualquer tipo de heresia que pudesse atacar a integridade do Mistério. Falamos de um afastamento e não de uma contradição; e esse afastamento é dito ser em relação à  teologia,  e não à  fé.

11. Mas, por outro lado, para escapar à censura do Motu proprio Traditionis custodese reivindicar – para si e para seus pares, deixando de reivindicá-lo para o conjunto do bom Povo de Deus – o uso exclusivo do Ordo Tradicional de São Pio V, o mesmo Pe. de Blignières é, de fato, obrigado a retirar igualmente qualquer força obrigatória da implementação do Novus Ordo Missae de Paulo VI. Assim o faz na Revista Sedes sapientiaepublicada pela Fraternidade São Vicente Ferrier(6). Dando como exemplo de falsa obediência incondicional a atitude, aos seus olhos questionável, do falecido Cardeal Journet, que se considerava estar obrigado, no dever de consciência, a adotar o Novus Ordo de Paulo VI “em nome da obediência”, o Pe. de Blignières chega ao ponto de dizer que “se pretendêssemos exigir a concelebração sacramental como sinal obrigatório de comunhão para um sacerdote que deseja receber um ministério, estaria introduzindo uma prática sem fundamento legal e alheia à verdadeira noção de comunhão. […] Seria necessário um juízo prudencial por parte do padre em questão. Dependeria de um juízo teológico e, se necessário, das Atas Fundadoras do Instituto do qual é membro. Aqui, mais uma vez, estamos longe da obediência incondicional”. No entanto, para além do que prevê a lei até agora em vigor, o Papa tem o poder de exigir tal concelebração a partir de agora, pelas razões que considera fundadas. E é, aliás, esta exigência que foi formulada pela Santa Sé, nas Respostas às Dubias publicadas em 18 de dezembro de 2021.

12. Então? Por um lado, D. Lefebvre seria “cismático” e “desobediente” por ter querido dar às almas os meios para continuarem a se santificar, apesar da invasão de um Novus Ordo Missae que é gravemente prejudicial à fé, e, por outro lado, o mesmo Novus Ordo Missae, que apenas se afastaria da teologia, e não da fé, não poderia obrigar, em nome da obediência, de modo que a exigência de concelebrá-lo deve ser contestada por um juízo prudente. Como explicar essa oscilação? Como conciliar esta recusa de concelebrar em um rito que se supõe não ser nem herético nem cismático com tanta insistência neste elemento da fé católica que é a comunhão hierárquica, e em cujo nome o ato consagratório de D. Lefebvre é qualificado de cismático?

13. Em todo caso, é claro que, desde o recente Motu proprio Traditionis custodes, os fiéis do movimento Ecclesia Deitêm sido confrontados com o dilema que D. Lefebvre já havia colocado claramente na época do Concílio: “Para permanecermos bons católicos, devemos tornar-nos protestantes”?(7). A fim de preservar a liturgia tradicional, devemos arriscar perder seu espírito aceitando as novidades? Foi para escapar desse dilema que o fundador da Fraternidade São Pio X procedeu às sagrações de 30 de junho de 1988. Ao denunciar essas sagrações como “um gravíssimo à unidade da Igreja”, o Pe. de Blignières dissuadiu os fiéis ligados à liturgia tradicional de recorrer ao ministério dos sacerdotes da Fraternidade São Pio X. Mas para mantê-los realmente no movimento Ecclesia Dei, ele não tem outra solução senão negar a obediência ao Novus Ordo Missae de Paulo VI. O tempo dirá se os fiéis terão sido sensíveis a esse tipo de estratégia. Mas não há dúvida de que isso já os priva dos meios necessários para garantir a sobrevivência da verdadeira Missa.

Notas

  1. Estudo citado, p. 48-49.
  2. A tradução francesa que aparece no site do Vaticano é defeituosa e imprecisa, pois afirma: “o que constitui em si mesmo” para tornar “secum infert”. A diferença de significado é tanto mais flagrante quanto acima o mesmo número 3 do Motu proprio emprega a expressão latina “in semetipso” para dizer exatamente o que corresponde ao francês “em si mesmo”.
  3. A mesma tradução é muito equívoca quando afirma “constitui um ato cismático” para traduzir “eficiente”. Com efeito, em primeiro lugar, o verbo francês “constituir” pode certamente designar uma eficiência, como quando dizemos, por exemplo, que um decorador constitui um buquê de flores. No entanto, o sentido usual e ordinário da expressão é um segundo significado que é sinônimo de “ser em si mesmo”, como quando se diz que o pecado da gula constitui uma espécie de intemperança.
  4. Dominique Palmieri, Prolegomenon de Ecclesia, § 26, p. 215-216; Louis Billot, A Igreja. I – Sua instituição divina e suas notas, questão 6, tese 9, n° 367, 371-372, p. 306-307; 309-310; Charles Journet, A Igreja do Verbo Encarnado, t. 1, Desclée, 1955 (2ª ed.), p. 698-699.
  5. Com coração paternal, mas com toda a gravidade que requerem as circunstâncias presentes, exorto-vos, Venerável Irmão, a renunciar ao vosso projeto que, se for realizado, não poderá parecer senão um ato cismático, cujas inevitáveis conseqüências teológicas e canônicas são por vós conhecidas.” (Carta do Papa João Paulo II de 9 de junho de 1988). Esta carta do Papa é uma resposta a uma carta de 2 de junho anterior, na qual D. Lefebvre havia especificado: “É para manter intacta a fé de nosso batismo que tivemos que nos opor ao espírito do Vaticano II e às reformas que ele inspirou. O falso ecumenismo, que está na origem de todas as inovações do Concílio, na liturgia, nas novas relações entre a Igreja e o mundo, na concepção da própria Igreja, leva a Igreja à sua ruína e os católicos à apostasia”
  6. Louis-Marie de Blignières, “Obediência incondicional? » in Sedes sapientiaen° 155 (primavera 2021), p. 54-57.
  7. Texto datado de 11 de outubro de 1964 e publicado em Pastoral Letters and Writings, Fideliter, 1989, p. 189-202.