DESIGUALDADES NECESSÁRIAS

Resultado de imagem para marcel lefebvreUm Individualismo Antinatural

Continuaremos a análise do princípio do liberalismo: ele é antinatural, diz o Cardeal Billot, “ao pretender que tudo deve ceder ante o bem da liberdade individual, que as necessidades sociais multiplicaram os empecilhos a esta liberdade, e que o regime ideal para o homem é aquele em que reina a lei do puro e perfeito individualismo”. Ora, continua o autor, “este individualismo é absolutamente contrário à natureza humana”.

Vocês já viram que se trata do liberalismo individual de Jean Jacques Rousseau, que se encontra por toda parte no fundo de todo pensamento político atual. De acordo com Rousseau, os homens nascem livres de toda coação, “anti-sociais” por natureza, feitos para viver isolados na selva, onde são felizes. A origem de seus males e das desigualdades está na introdução da propriedade privada, que dá origem às rivalidades: um “estado de guerra de todos contra todos”. Se os homens se agrupam em sociedades, não é por uma necessidade de sua natureza, mas unicamente por decisão de sua livre e espontânea vontade, como uma escapatória a este estado no qual   “o homem é um lobo para o outro homem”. A sociedade nada tem de natural, é puramente convencional em sua origem histórica e em sua constituição: esta convenção é um “contrato social”.

Toda esta teoria, cuja análise nós tiramos do livro do padre Baltasar Argos S.J.41, havia sido refutada anteriormente, e especialmente por São Tomás de Aquino, que demonstra a natureza social do homem, pondo em evidência que o homem é o animal mais provido de meios naturais para subsistir de modo autônomo quando vem ao mundo e que os homens, mesmo na idade adulta são incapazes de satisfazerem sozinhos a todas as suas necessidades; devem portanto ajudar-se mutuamente42. Gostaria de lhes apresentar uma página admirável do pensador político contemporâneo Charles Maurras (1868-1952), que seguindo São Tomás refuta magistralmente a teoria individualista e igualitária de Rousseau43. Contudo, parece- nos bastante indicar o que ensina Leão XIII, em relação a este assunto em sua encíclica sobre a origem do poder político:

“O grande erro destes filósofos está em não ver algo, que entretanto é evidente: os homens não constituem uma raça selvagem e solitária; a condição natural de viver em sociedade é anterior a qualquer decisão de sua vontade”44.

Uma Igualdade Quimérica

O princípio igualitário é quimérico, diz o Cardeal Billot, “inicialmente porque em absoluto não corresponde à realidade: supõe um pacto inicial na origem de toda sociedade. Onde ele viu tal pacto? E pressupõe a entrada livre de cada um na sociedade; e ainda vai mais longe: imagina que os homens foram moldados pelo mesmo modelo, exatamente iguais, o homem abstrato, reproduzido milhões de vezes sem as características individualizantes. Aonde está? Diz Taine: “aplicai o contrato social, se vos parece bem, mas explicai-o unicamente aos homens para os quais foi fabricado. São homens abstratos de nenhum século ou país, puras entidades surgidas da vara mágica da metafísica”45.

Leão XIII exprime o mesmo pensamento, na continuação da frase antes citada da encíclica “Diuturnum”: “Somai a isto, que o pacto que invocam é uma invenção e uma fantasia”.

Quero insistir sobre o aspecto fantasioso desta igualdade, segundo a qual os homens nascem iguais, ou pelo menos com iguais direitos: “os homens nascem e permanecem livres e iguais em seus direitos”, proclama o artigo primeiro da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” de 1791. Vejamos o que pensam a este respeito os papas:

O Papa Pio VI, inicialmente, condenando especialmente o artigo II desta  mesma  Declaração46,  refere-se  diretamente  ao  princípio  de liberdade-igualdade, o condena classificando-o de “fantasia” e de “palavras vazias e sem sentido”:

“Aonde está então esta liberdade de pensar e agir que a Assembléia Nacional dá ao homem social como um direito imprescindível da natureza? Este direito quimérico não é contrário aos direitos do Criador Supremo, a quem devemos a existência e tudo que possuímos? Será possível ignorar que o homem não foi criado para si mesmo, mas sim para ser útil a seus semelhantes? Pois é tal a debilidade da natureza humana que para se conservar os homens têm necessidade do socorro mútuo. E para isto os homens receberam de Deus a razão e o uso da palavra para poderem pedir ajuda aos outros e por sua vez socorrer aos que imploram o seu auxílio. É a mesma natureza que estabeleceu laços entre os homens e os reuniu em sociedade; por outro lado, considerando que o uso da razão consiste essencialmente em reconhecer a seu soberano autor, honrá-lo, admirá-lo, entregar-lhe toda sua pessoa e seu ser, considerando que desde sua infância teve necessidade de se submeter àqueles de mais idade, regular sua vida de acordo com as leis da razão, da sociedade e da religião, vê-se que esta igualdade, esta liberdade tão apreciadas, não são para ele, desde seu nascimento, mais que quimeras e palavras vazias, sem sentido”47.

Desta liberdade-igualdade supostamente inata ao indivíduo, em virtude do contrato social, derivará o princípio da soberania do povo; a soberania reside primeiramente no povo e de nenhum modo em Deus ou nas autoridades naturais constituídas por Deus. Pio VI não deixa de notar esta conseqüência.

O Papa Leão XIII por sua vez condena o princípio liberal da igualdade entre os homens, retomado pelos socialistas, e distingue cuidadosamente a igualdade que os homens têm por sua natureza comum da desigualdade que têm por causa das diferentes funções na sociedade, como diz o Evangelho:

“Os socialistas (…) sempre insistem em dizer, como nós sabemos, que todos os homens são por natureza iguais entre si, e por isso eles pretendem que não se deve dar ao poder nem honra nem reverência, nem obediência às leis, a não ser para aquelas nascidas de seus caprichos. Ao contrário, segundo os ensinamentos evangélicos, a igualdade entre os homens vem  de todos, dotados da mesma natureza, são chamados à mesma altíssima dignidade de filhos de Deus, e enquanto um mesmo fim é proposto a todos, cada um será julgado segundo a mesma lei e obterá castigo ou recompensa segundo seus méritos. Mas há uma desigualdade de direito e de poder que provém do próprio Autor da natureza, “em virtude de quem toda paternidade recebe seu nome nos céus e na terra”.

Leão XIII lembra a seguir o preceito da obediência às autoridades dado pelo apóstolo São Paulo: “não há poder que não venha de  Deus, e aqueles que existem foram estabelecidos por Deus. Por isso, quem resiste ao poder resiste à ordem querida por Deus” (Rm 13, 2). O Pontífice ensina em seguida que a hierarquia que se encontra na sociedade civil não é unicamente fruto da vontade dos homens, mas antes de tudo a aplicação de uma ordem divina, do plano de Deus:

“Porque na verdade aquele que criou e governa todas as coisas dispôs, com sua providência e sabedoria, que as coisas inferiores alcançassem seu fim pelas médias e estas pelas superioras. Pois assim como, mesmo no Reino dos Céus ele quis que os coros angélicos fossem diferentes e uns subordinados a outros, assim como na Igreja Ele instituiu vários graus de ordens e diversos ofícios para que “nem todos fossem apóstolos, nem todos doutores, nem todos pastores” (Rm 13, 1-7), assim também dispôs que na sociedade civil houvesse várias ordens distintas em dignidade, direitos e poderes, ou seja, que o Estado, como a Igreja, fosse um só corpo com muitos membros, uns mais nobres do que os outros mas todos necessários e solícitos ao bem comum”48.

Parece-me que estes textos mostram bem o total irrealismo do princípio fundamental do liberalismo: liberdade-igualdade. Pelo contrário, é um fato naturalmente inegável que em nenhuma etapa de sua vida o indivíduo é intercambiável, mas que ele é um membro, parte de um corpo constituído sem que ele devesse opinar. Neste corpo, além disso, ele está submetido à necessárias e úteis coações.  E enfim, neste corpo ele encontrará o lugar correspondente a seus talentos naturais ou adquiridos e a seus dons sobrenaturais, ainda  que submetido à hierarquias e à desigualdades também saudáveis. Assim Deus o concebeu. Ele que é um Deus de ordem e não de desordem.

Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre

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41 Cf. Baltazar P. Argos S.J. “Catéchisme Politique”, Orme Rond, 1981, pág. 25;

42 Cf. Santo Tomás, “De Regimine Principium”, liv. I cap. I

43 Charles Maurras, “Mês Idées Politiques”, cap. A Política Natural, pág. 17 e seg.

44 Encíclica “Diuturnum”, 29 de junho de 1881, PIN. 97.

45 Taine, “La Revolution”, Tomo I, Livro II, cap. 2.

46 “A livre comunicação de pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos  do  homem;  todo  cidadão  pode  portanto  falar,  escrever  e   imprimir livremente, devendo contudo responder pelos abusos desta liberdade, nos casos previstos pela lei”.

47 Carta “Quod Aliquantulum”, de 10 de março de 1791 aos bispos da Assembléia Nacional da França, PIN. nº3.

48 Encíclica “Quod Apostolici”, PIN. 71-72.