DO SUMMORUM PONTIFICUM A TRADITIONIS CUSTODES, OU DA RESERVA AO ZOOLÓGICO

O Papa Francisco publicou nesta sexta (16/07) um Motu Proprio cujo título poderia apresentar uma grande esperança: Traditionis custodes, “Guardiões da Tradição”. Sabendo que se dirige aos Bispos, poderia-se levar a sonhar: a Tradição está em vias de recuperar os seus direitos na Igreja?

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

Pelo contrário. Este novo Motu Proprio executa uma eliminação. Ele ilustra a precariedade do atual magistério e indica a data de expiração do Summorum Pontificum de Bento XVI, que nem sequer terá celebrado seu décimo quinto aniversário.

Tudo, ou quase tudo, contido no Summorum pontificum foi disperso, abandonado ou destruído. O objetivo também está claramente estabelecido na Carta que acompanha esta liquidação.

O Papa enumera dois princípios “sobre o modo de proceder nas dioceses”: “por um lado, prover o bem daqueles que estão enraizados na forma precedente de celebração e que precisam de tempo para retornar ao rito romano promulgado pelos “santos” Paulo VI e João Paulo II ”.

E, por outro lado: “impedir de erigir novas paróquias pessoais, ligadas mais ao desejo e à vontade de cada sacerdote do que às necessidades do “povo santo e fiel de Deus”.

Uma extinção programada

Enquanto Francisco se faz defensor das espécies animais ou vegetais em vias de desaparecimento, ele decide e promulga a extinção daqueles que estão ligados ao rito imemorial da Santa Missa. Esta espécie não tem mais o direito de viver: ela deve desaparecer. E todos os meios serão empregados ​​para alcançar este resultado.

E, antes de tudo, uma rigorosa redução da liberdade. Até agora, os espaços reservados para o rito antigo tinham uma certa latitude de movimento, um pouco como reservas. Hoje passamos para um regime de zoológico: gaiolas, rigorosamente restritas e delimitadas. O número delas é estritamente monitorado e, uma vez instaladas, será proibida fornecer outras.

Os guardiões – ou deveríamos dizer os carcereiros? – não são outros senão os próprios Bispos.

Tudo isso está especificado no artigo 3, parágrafo 2: “O bispo (…) indicará um ou mais lugares onde os fiéis aderentes a estes grupos possam se reunir para a celebração eucarística (mas não nas igrejas paroquiais e sem constituir uma nova paróquia pessoal)

O regulamento interno destas prisões é estritamente controlado (artigo 3º, parágrado 3): “O bispo (…) estabelecerá os dias em que, no lugar indicado, serão autorizadas as celebrações eucarísticas com o uso do Missal Romano promulgado por são João XXIII em 1962.”

Esse controle se estende aos menores detalhes (ibidem): “Nessas celebrações, as leituras serão proclamadas no vernáculo, utilizando as traduções da Sagrada Escritura para uso litúrgico, aprovadas pelas respectivas Conferências Episcopais.” Não se trata de usar a tradução de um Dom Lefebvre ou de um lecionário do passado.

A eutanásia está prevista para as espécimes consideradas impróprias aos cuidados paliativos (artigo 3º, parágrafo 5): “O bispo (…) procederá, nas paróquias pessoais canonicamente erigidas em benefício destes fiéis, a uma avaliação adequada da sua real utilidade para crescimento espiritual, e decidirá se os deve manter ou não.

A reserva é, de fato, suprimida em sua totalidade, uma vez que desaparece a comissão Ecclesia Dei (artigo 6º): “Os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, então erigidas pela Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, passam a ser de competência da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica.

Proibido para migrantes

Enquanto o Papa está constantemente preocupado com todos os tipos de migrantes, as prisões que ele instala tem fronteiras muradas, instransponíveis por fora.

Para garantir que não sejam criadas reservas selvagens, o Papa proibiu qualquer extensão da prisão (artigo 3º, parágrafo 6º): “O bispo (…) terá o cuidado de não autorizar a constituição de novos grupos.”

Esta medida também se assemelha à esterilização: estes selvagens do passado devem desaparecer; eles são proibidos de se reproduzir e perpetuar suas espécies.

Esta esterilização também diz respeito aos padres que serão ordenados no futuro (artigo 4): “Os padres ordenados após a publicação deste Motu proprio, que pretendam celebrar com o Missale Romanum de 1962, devem fazer um pedido formal ao bispo diocesano que irá consultar a Sé Apostólica antes de conceder a autorização.”

Quanto aos sacerdotes que já se beneficiam de uma autorização, vão agora necessitar de uma renovação do seu passe “celebrativo”, que se assemelha a um visto temporário (artigo 5º): “Os padres que já celebram segundo o Missale Romanum de 1962 pedirão autorização do bispo diocesano para continuar a fazer uso da faculdade.

Assim, se se trata de restringir, reduzir ou mesmo destruir grupos, os bispos têm carta branca, mas se for necessário autorizar, o Papa não confia neles: é preciso passar por Roma.

Enquanto dezenas de padres, muitas vezes apoiados por seus bispos, escarneceram a Congregação para a Doutrina da Fé ao “abençoar” casais homossexuais, sem qualquer reação romana, exceto uma aprovação velada de Francisco por meio de sua mensagem ao Padre Martin, os futuros padres serão observados de perto se pensam em celebrar segundo a Missa de São Pio V.

Obviamente, é mais fácil esconder sua falta de autoridade aterrorizando os fiéis que não resistirão, do que reduzir o cisma alemão. Parece que não havia nada mais urgente do que atingir esta parte do rebanho.

Vacinação contra o Lefebvrismo

O grande medo da contaminação pelo vírus Lefebvrista é exorcizado pela vacina Vat. II   – do laboratório Moderno – obrigatória (artigo 3º, parágrafo 1º): “O bispo (…) zelará por que tais grupos não excluam a validade e legitimidade da reforma litúrgica, das disposições do Concílio Vaticano II e do Magistério dos Soberanos Pontífices.”

E tudo o que possa ser fonte de potencial contágio é implacavelmente eliminada (artigo 8º): “Normas, instruções, concessões e costumes anteriores, que não estejam em conformidade com as disposições do atual Motu Proprio, são revogados“.

Levado pelo entusiasmo, o Papa quase chega a dizer que é a velha Missa que é um vírus perigoso que deve-se proteger. Assim, no artigo 1º ele especifica: “Os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano.”

Se o Novus Ordo é a única expressão da lex orandi, como qualificar a Missa Tridentina? É liturgicamente ou canonicamente sem peso? Não tem sequer direito ao lugar que o rito dominicano, o rito ambrosiano ou o rito de Lyon ainda ocupam na Igreja Latina?

Isso parece emergir do que diz o Papa na carta que acompanha seu Motu Proprio. Sem parecer estar consciente do paralogismo que ele está cometendo, ele escreve: “Sinto-me consolado nesta decisão pelo fato de que, após o Concílio de Trento, São Pio V também revogou todos os ritos que não podiam reivindicar uma antiguidade comprovada, estabelecendo um único Missale Romanum para toda a Igreja latina. Durante quatro séculos, este Missale Romanum promulgado por São Pio V foi, portanto, a expressão principal da lex orandi do rito romano, cumprindo uma função unificadora na Igreja.”

A conclusão lógica que se segue dessa comparação é que esse rito deve ser mantido. Tanto mais que a Bula Quo primum de São Pio V a protege de qualquer ataque.

Isso também foi confirmado pela comissão de cardeais reunida por João Paulo II, que afirmou quase unanimemente (8 de 9) que um Bispo não poderia impedir um sacerdote de celebrá-la, depois de ter observado, por unanimidade, que ela nunca havia sido proibida.

E o que o Papa Bento XVI aceitou e ratificou no Summorum pontificum.

Mas para Francisco, os antigos ritos mantidos por São Pio V, incluindo a chamada Missa Tridentina, aparentemente não têm valor unificador. O novo rito, e só ele, com seus cinquenta anos de existência, suas infinitas variações e seus inúmeros abusos, é capaz de dar unidade litúrgica à Igreja. A contradição é flagrante.

Voltando à idéia de eliminação das espécies, o Papa pôde escrever aos Bispos: “Cabe-vos, sobretudo, trabalhar pelo regresso a uma forma unitária de celebração, verificando caso a caso a realidade dos grupos que celebram com este Missale Romanum.

Uma lei claramente oposta ao bem comum

A impressão geral que emerge desses documentos – Motu Proprio e a Carta do Papa que a acompanha – dá a sensação de um sectarismo aliado a um comprovado abuso de poder.

A Missa tradicional pertence à parte mais íntima do bem comum na Igreja e, restringi-la, rejeitá-la nos guetos e finalmente planejar seu desaparecimento, não pode ter nenhuma legitimidade. Esta lei não é uma lei da Igreja, porque, como diz Santo Tomás, não existe lei válida contra o bem comum.

Além disso, há, em todos os aspectos, um tom óbvio de fúria manifestado por certos fanáticos da reforma litúrgica, contra a missa tradicional. O fracasso desta reforma é sublinhado, como num claro-escuro, pelo sucesso da Tradição e da Missa Tridentina.

É por isso que eles não suportam. Sem dúvida, imaginam que seu desaparecimento total fará com que os fiéis voltem às igrejas esvaziadas do sagrado, o que é um trágico equívoco. A magnífica ascensão desta celebração digna de Deus apenas sublinha sua indigência: não é a causa da desertificação produzida pelo novo rito.

A verdade é que este Motu Proprio, que mais cedo ou mais tarde terminará no esquecimento da história da Igreja, não é em si uma boa notícia: marca uma pausa na reapropriação da sua Tradição pela Igreja, e retardará o fim da crise que já dura mais de sessenta anos.

Quanto à Fraternidade São Pio X, ela encontra uma nova razão de fidelidade ao seu fundador, Mons. Marcel Lefebvre, e de admiração por sua clarividência, sua prudência e sua fé.

Embora a Missa tradicional esteja em processo de extinção e as promessas feitas às sociedades Ecclesia Dei estão sendo tão bem cumpridas, ela encontra na liberdade que lhe foi deixada pelo Bispo de Ferro, a possibilidade de continuar a lutar pela fé e pelo reinado de Cristo Rei.