JOÃO PAULO II: UM NOVO SANTO PARA A IGREJA? – ARTIGO 2/3: AS NOVAS CANONIZAÇÕES OBRIGAM EM CONSCIÊNCIA TODOS OS FIÉIS CATÓLICOS?

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Padre Jean-Michel Gleize, FSSPX

Fonte: Courrier de Rome, Janeiro de 2014 – Tradução: Dominus Est

[Nota do blog: Texto publicado originalmente antes da canonização do Papa João Paulo II]

ARGUMENTOS A FAVOR E CONTRA

Parece que sim

Primeiramente, as novas canonizações apresentam-se como juízos solenes dos soberanos pontífices, ou seja, como atos de seu magistério supremo. Ora, o ato do magistério supremo do papa obriga em consciência todos os fiéis católicos. Portanto, as novas canonizações obrigam em consciência todos os fiéis católicos.

Se se objeta que a nova intenção de colegialidade implicada pelas reformas conciliares autoriza a duvidar que as novas canonizações sejam atos do magistério supremo do Papa, responde-se em segundo lugar que, qualquer que sejam esses antecedentes históricos, vê-se bem, na ocasião do ato formal dessas novas canonizações, que o soberano pontífice age segundo seu magistério pessoal. Com efeito, as fórmulas utilizadas durante essas novas canonizações significam claramente que o papa, investido de sua autoridade pontifical apostólica, proclama a glória celeste e a santidade do canonizado. A intenção de colegialidade não poderia atentar contra a intenção requerida, tal como ela está suposta pelo ato da canonização, mesmo após o Vaticano II. As novas canonizações, portanto, obrigam em consciência todos os fiéis católicos, enquanto atos do magistério supremo do papa.

Em terceiro lugar, as novas canonizações apresentam-se como juízos definitivos do magistério solene, ou seja, últimos e definitivos, que não poderiam mais ser nem ab-rogados, nem modificados, nem revisados ou reexaminados. Ora, por tais juízos são obrigados em consciência todos os fiéis católicos. Com efeito, os termos empregados até aqui por essas novas canonizações são aqueles pelos quais o papa propõe como exemplo a toda a Igreja um fiel defunto, para que Ela o considere obrigatoriamente como verdadeiramente santo, que goza de felicidade no céu, e com a obrigação de fazer dele objeto de culto cá embaixo[3]. Ora, tal juízo é definitivo em razão da mesma obrigação que ele impõe a toda a Igreja. Daí se tira a mesma conclusão que se tirou nos dois argumentos anteriores.

Em quarto lugar, como toda canonização, aquelas levadas a cabo desde o Vaticano II representam muitos juízos infalíveis. Com efeito, a infalibilidade das canonizações, sem estar ainda explicitamente definida como um dogma, é uma verdade constantemente ensinada na Tradição da Igreja, ao ponto de ser, senão implicitamente definida[4], ao menos certa[5]. Negar essa infalibilidade mereceria, segundo João de Santo Tomás[6], a censura «sapiens haeresim et proximum errori in fide» e equivaleria, aos olhos de Bento XIV, senão à nota de heresia, pelo menos à de temeridade[7]. Ora, um juízo infalível obriga em consciência todos os fiéis católicos. Tira-se daí a mesma conclusão que nos três argumentos anteriores.

Se se objeta que uma canonização errônea ou duvidosa seria uma canonização falsa e aparente, replica-se em quinto lugar que Deus induziria assim todos os fiéis de sua Igreja ao erro sobre um ponto de grandíssima importância. Ora, isso repugna à reta razão, esclarecida ou não pela fé. Tira-se daí a mesma conclusão que nos quatro argumentos anteriores.

Se se objeta enfim que a reta razão tem condições de discernir caso a caso a eventual ausência de santidade, replica-se em sexto lugar que isso acabaria por substituir a autoridade do magistério eclesiástico pelo juízo privado da consciência individual. Tira-se daí a mesma conclusão que nos cinco argumentos anteriores.

Parece que não

Em sétimo lugar, na esteira de Mons. Lefebvre, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X decidiu «não adotar as novas festas introduzidas desde a instauração do Missal de Paulo VI, a fim de não se encontrar na necessidade de escolher entre elas e cair na arbitrariedade»[8]. Ora, isso equivale a decidir que as novas canonizações não obrigam em consciência. Portanto, ao menos aos olhos da Fraternidade São Pio X, as novas canonizações não obrigam em consciência.

Em oitavo lugar, o fundador da Opus Dei, Josemaria Escrivá de Balaguer (1902-1975), foi beatificado em 17 de maio de 1992 e canonizado em 6 de outubro de 2002 pelo papa João Paulo II. Ora, ainda que nascida antes do último concílio, a obra desse personagem já veiculava certas ideias-chave nos pontos em que o Vaticano II se afasta da Tradição da Igreja. Sem negar o caráter hierárquico da Igreja, a tendência da Opus Dei desemboca de fato na sacralização do estado de leigo e coloca-o no mesmo nível do estado do sacerdócio dito ministerial. Essa tendência é impregnada também de uma ideia, no mínimo muito ambígua, de liberdade do homem: observa-se no nível pessoal uma prática religiosa muito individual que negligencia os atos de fé e piedade públicas, assim como no nível social a não confessionalidade dos Estados, admitidos como consequência de uma colaboração com os partidos democrata-cristãos[9]. Se julgamos a árvore por esse fruto, podemos certamente dizer que as novas canonizações não obrigam em consciência.

Princípio de resposta

As «novas canonizações» devem certamente ser entendidas aqui desde um ponto de vista teológico, e não histórico ou cronológico. Dito de outra maneira, a novidade não está no simples fato que as canonizações das quais falamos se deram após o concílio, pois se fosse isso, essa novidade diria respeito uniformemente a todas as canonizações que se deram desde 1965. A novidade da qual falamos consiste, em primeiro lugar, que o processo de canonização foi reformado. Ela também aferra-se mais profundamente a um estado de espírito que tomou conta dos homens da Igreja em favor do Concílio Vaticano II, cujos ensinamentos realizaram «a conversão da Igreja ao mundo»[10] e consagrou «o triunfo das ideias liberais»[11]. Desses dois fatos, muitas consequências podem ser tiradas. Uma das mais evidentes é a nova ideia que os homens da Igreja passaram a ter acerca da santidade e da salvação.

O autor da santidade é Cristo, Verbo Encarnado, fonte de toda graça. O Papa João Paulo II declarou que Cristo é «o cumprimento do anélito de todas as religiões do mundo» e que «constituindo por isso mesmo o seu único e definitivo ponto de chegada»[12]. Ele inclusive destacou que «a ação múltipla e diversificada do Espírito Santo, que continuamente espalha as sementes da verdade no meio de todos os povos, das suas religiões, culturas e filosofias» e viu no Espírito de Deus «o principal agente do diálogo da Igreja com todos os povos, culturas e religiões»[13]. Somente a verdadeira religião revelada, a religião católica, confere a vida da graça e une as almas ao Verbo Encarnado. As outras religiões não o podem, mesmo que guardassem uma certa parte de verdade e bondade naturais. Entre a natureza e a graça há muito mais do que a mera diferença de grau que sugere o emprego da palavra «semente»; não se poderia, portanto, dizer que Cristo é o cumprimento de todas as religiões e nem que Ele leva à sua maturidade os elementos naturais presente nelas. Se a Igreja se mostra paciente com as almas ignorantes ou confusas, todavia ela não pode ter respeito algum às falsas religiões. Mas a conclusão lógica dessa confusão entre natureza e graça, subjacente às palavras citadas, é que aos olhos de João Paulo II[14], as comunidades cristãs, inclusive as não católicas, «todas têm mártires da fé cristã». O que o leva a dizer que «numa visão teocêntrica, nós, cristãos, já temos um Martirológio comum». A santidade, portanto, não é parte exclusiva da religião católica, porque «apesar da divisão, que é um mal de que nos devemos curar, todavia realizou-se como que uma comunicação da riqueza da graça». Estes santos «provêm de todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, que lhes abriram a entrada na comunhão da salvação». Essa presença universal dos santos dá a prova «da transcendência do poder do Espírito». Essa declaração, por si sí, representa uma ocasião de ruína espiritual (ou seja, um escândalo no sentido teológico do termo), e nela está implícito que a graça é dada indiferentemente a todas as confissões cristãs católicas. Nela também está subentendido que todo testemunho prestado a Deus mantém-se igualmente válido.

No mínimo, pode-se dizer que essas declarações são estranhas. O fiel católico fica perplexo diante delas. Com efeito, ele pode efetivamente perguntar se é mantida, sem alteração, a definição mesma do ato pelo qual o papa proclamava até aqui a glória celeste (ou seja, a salvação) e a virtude exemplar (ou seja, a santidade) daqueles que ele canonizava. Tal perplexidade é apenas a reação normal de um espírito sadio, confrontado com o paradoxo que coloca lado a lado um certo número de santos — em que logo se vê que mereceram ser canonizados — e um certo número de canonizados em que podemos ver claramente uma duvidosa santidade. Esse paradoxo se explica em razão da confusão introduzida pelas reformas pós-conciliares, assim como pela mentalidade liberal e ecumênica que tomou conta das almas desde o Vaticano II. Ela não pode ser dissipada a menos que se ataque sua raiz e se questione o mérito dessas reformas e da nova mentalidade que elas exprimem.

Em todo caso, devemos partir de uma verdade certa, visto que ela foi constantemente proclamada pelo magistério da Igreja ao longo dos séculos. Essa verdade é que, como todo ato, a canonização se define primeira e essencialmente pelo seu objeto. Ele corresponde ao triplo fato que a pessoa histórica que está inscrita no catálogo dos santos seja verdadeiramente santa, tenha obtido a felicidade celeste e exija um culto por parte de toda a Igreja. O primeiro fato (a santidade) é causa dos dois outros, e o segundo é também causa do terceiro, o qual é uma simples consequência dos dois primeiros. E tanto o primeiro como o segundo só são atestados, ou seja, nem mais nem menos que declarados com autoridade, pela canonização. Esta não causa nem a santidade e nem a glória celeste, mas as pressupõe e constata, antes de poder impor o culto do canonizado a toda a Igreja. O discernimento da santidade exige o exame das virtudes heroicas, e o discernimento da beatitude celeste exige o exame dos milagres. Na medida em que ele é positivo e que termina diante da presença de certas virtudes heroicas e milagres, esse discernimento é reservado à Santa Sé e, quando ele segue conforme as regras requeridas, ele é normalmente beneficiado pela assistência de Deus. Mas existe também um discernimento negativo, que consiste em concluir pela ausência de virtudes e milagres — ou ao menos duvidar seriamente de sua presença — por motivos suficientemente verificados. Esse discernimento negativo é acessível à reta razão, esclarecida pela fé ou mesmo pela simples lei natural. Ele é suficiente para concluir sobre o caráter ao menos duvidoso de uma canonização e deduzir daí que esse ato não poderia obrigar em consciência. E ele é reforçado por esse outro fato indubitável: que o procedimento seguido não oferece ou oferece de modo diminuído as garantias requeridas à segurança do juízo último.

Portanto, respondemos à questão posta adotando um método a posteriori, ou seja, falando de um fato que estamos obrigados a constatar, a saber, o fato averiguado de tal ou qual canonização em que é duvidoso que o fiel defunto dado como exemplo a toda a Igreja tenha exercido as virtudes heroicas e realizado milagres. E esse fato pode ele mesmo ser explicado por um conjunto de circunstâncias determinantes (a reforma do novo processo, a nova mentalidade liberal e ecumênica que sobreveio desde o último concílio), que são tais que o fiel católico não tem mais a certeza moral que tinha antes dos méritos dessa canonização. Concluímos assim, salvo meliori judicio, não como o termo de uma dedução a priori, dizendo que nenhuma canonização nova poderia obrigar em consciência, mas no termo de uma constatação realista de que ao menos algumas dentre elas não podem obrigar em consciência, em razão de sua natureza duvidosa, pelos motivos aqui alegados. Portanto, a resposta é dada caso a caso, para cada canonização, que segue para o exame de seu objeto e suas circunstâncias.

Essa resposta certamente permanece limitada e provisória. Quer ser prudente e não tem a pretensão de esgotar o assunto. Porquanto se pode muito bem perguntar qual valor conceder a essas novas canonizações, consideradas desta vez todas sem exceção, enquanto tais, ou seja, na medida em que supostamente dão como exemplo uma nova santidade. É, efetivamente, muito nova uma santidade que se dá como prova «da transcendência do poder do Espírito» e que se define a partir de então como resultado «da ação múltipla e diversificada do Espírito Santo, que continuamente espalha as sementes da verdade no meio de todos os povos, das suas religiões».

Resposta aos argumentos

Ao primeiro[15] nós respondemos que, desde as reformas pós-conciliares, o ato da canonização não se apresenta mais claramente como um ato do magistério supremo do sumo pontífice. As novas normas promulgadas em 1983 pela Constituição apostólica Divinus perfectionis magister de João Paulo II[16], assim como as precisões indicadas no Motu proprio Ad tuendam fidem de 1998[17] estabelecem efetivamente como princípio que, quando o papa canoniza alguém, sua intenção pode não ser mais exclusivamente a de realizar um ato de seu magistério pessoal, como era até então; essa intenção pode ser também a de intervir como órgão encarregado de confirmar um ato do magistério colegiado. Ora, até então toda a tradição teológica considerava a canonização como o exercício exclusivo do magistério próprio do papa, e similar àquele da locutio ex cathedra. Portanto, é ao menos duvidoso que os atos pontificais realizados em conformidade com essa nova intenção híbrida, definida ela mesma por novas normas, possam corresponder à definição de uma verdadeira canonização que obriga a todos os fiéis em consciência.

Ao segundo nós respondemos que o ato da canonização, com as fórmulas que ele traz consigo, implica normalmente por si mesmo a intenção requerida para um ato do magistério pessoal do soberano pontífice, mas isso tem validade salvo declaração explícita em contrário. Há aí um princípio geral que se aplica a todos os atos humanos, que são os atos realizados de maneira livre. Temos nesse caso um exemplo na carta apostólica Ordinatio sacerdotalis de 22 de maio de 1994. João Paulo II recorreu a expressões que implicam normalmente a intenção requerida para uma declaração ex cathedra advinda do magistério solene do papa. Todavia, no dia 27 de junho que adveio no mesmo ano, o cardeal Ratzinger declarou em nome da Santa Sé uma intenção explícita contrária[18], especificando que, apesar das fórmulas utilizadas por João Paulo II, seu ato havia sido desejado por ele e devia portanto ser considerado por todos os fiéis católicos como a simples expressão de um magistério ordinário do papa, e de maneira alguma como uma declaração solene ex cathedra. Não se pode, portanto, sempre e absolutamente limitar-se às expressões usadas no contexto do ato para presumir a natureza do ato. Essas expressões não são fórmulas mágicas, e elas não produzem mais o valor do ato, como um sacramento produz a graça. Elas não são a causa, mas somente o sinal da intenção requerida, e portanto da natureza do ato[19]. Normalmente, elas são fundamento de uma presunção, mas esta desaparece conforme outros sinais mais patentes obrigam a concluir o contrário — porque o autor do ato é livre para proceder como quiser, sem que sua intenção seja necessariamente vinculada pelas fórmulas que ele emprega. Materialmente consideradas, as expressões utilizadas durante as novas canonizações enunciam indubitavelmente que o papa «declara», «define» ou «estabelece». Mas a questão é saber com qual motivo ele o faz. Até então, tais expressões faziam referência implícita a um juízo pessoal do papa. As reformas indicadas na resposta ao primeiro argumento não dão mais autorização suficiente para essa referência. Temos, portanto, sérias razões para duvidar que as novas canonizações correspondam enquanto tais a atos do magistério pessoal do sumo pontífice.

Ao terceiro respondemos que a canonização se define, enquanto juízo definitivo, em função de seu objeto formal, que corresponde ao triplo fato que segue: a pessoa histórica que é inscrita no catálogo dos santos é verdadeiramente santa; ela obteve a felicidade celeste; ela deve ser objeto de culto para toda a Igreja. E tudo repousa sobre o fato da santidade, que está na raiz dos dois outros. Porquanto o ato da canonização limita-se a declarar publicamente a santidade. Ele não a causa, mas a pressupõe. Na falta de objeto não pode haver ato, e é por isso que na falta de santidade não se pode ter verdadeira canonização. Poderíamos, no máximo, falar de uma falsa canonização, na medida em que se trata de um ato que apresenta as aparências externas da canonização sem sua natureza intrínseca, da mesma maneira que «falamos de um ouro falso quando o exterior de uma coisa tem em sua aparência a cor do ouro e outros acidentes do gênero, mas que todavia em seu interior não subsiste a natureza do ouro»[20]. Ora, a reta razão esclarecida pela fé é capaz de constatar a ausência de santidade, que é o objeto formal e portanto como que essência do ato da canonização, a despeito das aparências exteriores e a solenidade da proclamação pontifical, que são somente acidentes. É por isso que o ato que pretendesse declarar santo alguém que não o é não poderia ser senão uma falsa canonização.

Ao quarto[21] respondemos que a infalibilidade não pode prescindir de uma certa diligência humana. No estado de justiça original, o primeiro homem era imortal por conta de uma força sobrenatural atribuída por Deus à sua alma, e que essa força tinha como efeito a preservação de seu corpo de toda corrupção, enquanto a alma permanecesse submissa a Deus[22]. Todavia, o primeiro homem tinha, apesar disso, a necessidade de se alimentar, porque a ação sobrenatural de Deus, conferindo a imortalidade a esse corpo, supunha a ação vital de sua alma vegetativa, certamente insuficiente, mas ainda assim necessária[23]. O fato de alimentar-se não torna imortal, mas ninguém poderia ser feito imortal por Deus sem se alimentar. De maneira semelhante, o fato de investigar com toda a diligência requerida a santidade do futuro canonizado não torna a canonização infalível, mas nenhuma canonização poderia se tornar infalível sem uma investigação suficiente. A assistência divina que causa a infalibilidade se exerce efetivamente à maneira de uma providência. Esta, longe de excluir que o papa examine com cuidado os testemunhos humanos que atestam a virtude heroica do futuro santo, assim como os milagres obtidos em seu nome, exigem-no necessariamente. Durante o Concílio Vaticano I, o relator encarregado de defender em nome da Santa Sé o capítulo IV da futura constituição Pastor Aeternus, definindo a infalibilidade pessoal do papa, insistia sobre esse ponto, o que já permanece verdadeiro no nível da definição ex cathedra. «A infalibilidade do pontífice romano é obtida não por modo de revelação e nem por modo de inspiração, mas por modo de uma assistência divina. É por isso que o papa, em virtude da sua função, e por causa da importância do fato, está obrigado a empregar os meios requeridos para pôr suficientemente em dia a verdade e enunciá-la corretamente. Esses meios serão diferentes conforme as matérias tratadas e nós devemos certamente crer que quando Cristo prometeu a São Pedro e a seus sucessores a assistência divina, essa promessa continha também os meios requeridos e necessários para que o sumo pontífice pudesse enunciar infalivelmente seu juízo»[24]. O que se afirma a respeito da definição ex cathedra vale mais ainda para a canonização, cujo juízo recai sobre fatos contingentes e apoia-se sobre testemunhos humanos falíveis. Santo Tomás também insiste acerca desse ponto quando afirma que a assistência divina é condicionada pelo exame dos testemunhos humanos, que atestam a santidade de vida e os milagres[25]. Portanto, o argumento do objetante é defeituoso, visto que ele presume uma concepção ocasionalista da ação divina, recusando toda atividade aos intermediários humanos, sobre o plano mesmo da assistência requerida à infalibilidade. Se levarmos a cabo a lógica de tal raciocínio, deveríamos concluir que o primeiro homem alcançou a imortalidade sem precisar comer e beber, consequência evidentemente absurda e contra a qual se levanta não somente a teologia, mas também o bom senso do doutor angélico. Eis por que o processo de canonização guarda toda sua importância e eis também por que um vício nesse procedimento leva a duvidar legitimamente da infalibilidade do ato que esse procedimento normalmente deveria garantir.

O processo seguido pela Igreja até o Vaticano II era a expressão do rigor com o qual as verificações necessárias eram realizadas[26]. Após as novas normas impostas por João Paulo II em 1983, o essencial do processo foi confiado aos cuidados do bispo Ordinário: ele investiga a vida do santo, seus escritos, suas virtudes e seus milagres e constitui um dossiê a ser transmitido para a Santa Sé. A Sagrada Congregação examina o dossiê e se pronuncia antes de submetê-lo ao juízo do papa. Só é requerido um único milagre para a beatificação e outro único para a canonização[27]. O acesso aos dossiês dos processos de beatificação e de canonização não é fácil, e isso, na prática, não nos possibilita verificar a seriedade com a qual esse novo processo é aplicado. Mas é inegável que, considerado em si mesmo, ele já não é mais tão rigoroso quanto o antigo. Esse processo realiza menos ainda aquelas garantias requeridas da parte dos homens da Igreja que assegurariam a assistência divina na infalibilidade da canonização e que, com maior razão, assegurariam a ausência do erro de fato na beatificação. Além disso, o Papa João Paulo II decidiu fazer uma exceção ao processo atual (que estipula que o começo de um processo de beatificação não pode começar antes de se completarem cinco anos da morte do servo de Deus) ao autorizar a introdução da causa da Madre Teresa apenas três anos após sua morte. Bento XVI fez o mesmo pela beatificação de seu predecessor. A dúvida torna-se ainda mais legítima quando conhecemos a legitimidade da muito conhecida lentidão da Igreja acerca de tais assuntos.

Ao quinto respondemos que nada podemos contra os fatos. Deus permite, infelizmente, que sua Igreja seja castigada por uma pregação cuja natureza magisterial tenha se tornado duvidosa em muitos pontos. Contra tal fato, nenhum argumento tem valor. Ou, mais exatamente, o único argumento ao qual poderia recorrer o objetante seria o de negar esse fato e concluir que, quando Deus nos ensina através do órgão do magistério eclesiástico, sua palavra não leva em consideração o princípio de não-contradição. Mas responderíamos então que isso repugna à reta razão, esclarecida ou não pela fé. Deve-se, portanto, admitir o fato. Torna-se concebível, a fortiori, que Deus pode permitir, infelizmente, falsas canonizações. Deus não induz, todavia, os fiéis de sua Igreja ao erro, visto que eles permanecem capazes de discernir, recorrendo ao critério negativo ao qual nós nos referimos no princípio da resposta.

Ao sexto respondemos, novamente, que nós não podemos nada contra uma situação de exceção que, mesmo que ela dure, encontra sua origem nas consequências verificadas no último concílio. O católico perplexo não é um protestante, ou seja, um crente emancipado de toda autoridade magisterial. Mesmo perplexo, ele mantém-se católico, ou seja, submisso por princípio a essa regra da fé que é o magistério divinamente instituído por Deus. São os homens da Igreja que o tornam hoje perplexo por causa de suas mentalidades liberais. E é a Tradição bimilenar da Igreja que lhe dá os meios para permanecer católico. O discernimento graças ao qual a reta razão verifica a ausência de santidade apoia-se efetivamente nos ensinamentos anteriores do magistério, que já definiram suficientemente a santidade através do exemplo de todos os santos canonizados até antes do Vaticano II. Suas respectivas santidades vêm daquilo que eles viveram em conformidade com o Evangelho e tudo o que viesse contradizer seus exemplos nesse ponto não poderia enganar nenhuma alguma de boa vontade.

Ao sétimo respondemos que a decisão tomada por Mons. Lefebvre exprime diretamente uma medida prudencial, sobre o plano propriamente litúrgico. Indiretamente, ela pressupõe um juízo segundo as circunstâncias, tratando não de todas as novas canonizações, mas só daquelas que apresentam uma dificuldade evidente.

Ao oitavo respondemos que haveria uma distinção a ser feita entre, de um lado a obra da Opus Dei e as tendências que ela veicula, e do outro lado a pessoa, as ideias e a vida de seu fundador. E mesmo que os fatos alegados pelo objetante fossem imputáveis a Dom Escrivá, não se poderia concluir sem mais nem menos que sua canonização não obriga em consciência. É verdade que, por si só, esse caso isolado já seria suficiente para atestar um vício de método no novo processo seguido na questão das canonizações, assim como uma intenção defeituosa no papa. E mesmo que esse vício e esse defeito fossem observados em ato em um só ou alguns casos mais ou menos isolados, a reforma do processo e o novo estado de espírito liberal que estão em sua raiz podem sempre causar temor em todos os demais casos. Sem dúvidas. Mas há somente aí uma presunção. E ela deixa ainda indeterminado o juízo que poderíamos eventualmente formular sobre outras canonizações.

Continua…

Notas

  1. Cf. por exemplo AAS, 2003, p. 747: «… beatum Josephmariam Escriva de Balaguer sanctum esse decernimus et definimus, sanctorum catalogo adscribimus, statuentes eum in universa Ecclesia inter sanctos pia devotione recoli debere.»
  2. J. Salaverri, De Ecclesia, nº 726.
  3. Cardeal Louis Billot, S.J., L’Église. II – Sa constituition intime, Courrier de Rome, 2010, nº 610, p. 208-209 ; Arnaldo Xavier da Silveira «Apprendice: Lois et infaillibilité» em La nouvelle messe de Paul VI: qu’en penser?, D.P.F., 1975, p. 164.
  4. João de Santo Tomás, Cursus theologicus sobre IIaIIae, questão 1, disputatio 9, artigo 2, nº 11.
  5. Traité des canonisations, livro I, capítulo 45, nº 28.
  6. Mons. Lefebvre durante a Reunião dos Superiores maiores da Fraternidade, 7 de setembro de 1984, §13. Reproduzido em Cor unum nº 73 de outubro de 2002, p. 23-24.
  7. O leitor poderia reportar-se às Memorias (3 vol. Ed. Plaza & Janés-Cambio), de Laureano López Rodó, membro numerário da Opus Dei, ministro para o Plano de Desenvolvimento, e posteriormente ministro das Relações Exteriores sob o governo de Franco.
  8. Mons. Lefebvre, Ils L’ont découronné, Fideliter, 1987, p. 217.
  9. Id., ibidem, p. 219.
  10. Carta apostólica Tertio Millenio Adveniente de 10 de novembro de 1994, nº 5.
  11. Exortação apostólica Ecclesia in Asia de 6 de novembro de 1999, nº 15.
  12. Encílica Ut unum sint de 25 de maio de 1995, nºs 82-85.
  13. Para mais detalhes, ver o número de fevereiro de 2011 do Courier de Rome, segunda parte, § 2.
  14. Constituição apostólica Divinus perfectionis magister, AAS, 1983, p. 351. Esse texto de João Paulo II é citado por Bento XVI em sua «Mensagem aos membros da Assembleia plenária da Congregação para a causa dos santos», datada de 24 de abril de 2006 e publicada na edição francesa do Osservatore romano de 16 de maio de 2006, p. 6.
  15. Cf o §9 da Nota da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé publicada para servir de comentário a esse Motu proprio, em AAS de 1998, p. 547-548.
  16. DC 2097 de 3 de julho de 1994, p. 611-615.
  17. E. Dublanchy, «Infaillibilité» em Dictionnaire de théologie catholique, col 1703-1704; J. Salaverri, De Ecclesia, nº 623-629 ; Billot, nº 986-989.
  18. «sicut dicitur aurum falsum, in quo exterius apparet color auri, et alia huiusmodi accidentia, cum tamen interius natura auri non subsit». Santo Tomás de Aquino, De veritate, nº 1, a. 10.
  19. Para mais detalhes, ver o número de fevereiro de 2011 do Courier de Rome, segunda parte, § 1.
  20. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia pars, q. 97, a. 1
  21. Id., ibidem, artigo 3.
  22. Discurso proferido em nome da Deputação da fé por S. E. Mons. Gasser, bispo de Brixen, durante a 84ª assembleia geral de 11 de julho de 1870, em resposta à 53ª emenda sobre o quarto capítulo da constituição De Ecclesia em Mansi, t. 52, col. 1213. Ver também: Cardeal Louis Billot, S.J., L’Église. II – Sa constituition intime, Courrier de Rome, 2010, nº 991, p. 486.
  23. Santo Tomás de Aquino, Quaestio quodlibetale nº IX, q. 8, a. 16, corpus e ad 2.
  24. Poderíamos nos reportar a T. Ortolan «Canonisations dans l’Église romaine» em Dictionnaire de théologie catholique, t. II, 2ª parte, especialmente cols. 1642-1654. «O que a Igreja exige daqueles que Ela reserva as honras da canonização não é somente a posse de uma virtude, mas de todas sem exceção. Neles devem resplandecer primeiramente as virtudes teologais, que têm Deus por objeto imediato. Em seguida, todas as demais virtudes: intelectuais e morais. Essas virtudes deverão ser praticadas não de uma maneira qualquer, mas até ao heroísmo. […] A vida do servo de Deus passa pelo crivo da mais impiedosa crítica; e é necessário que não somente não se encontre nada de repreensível, mas que o heroísmo se encontre em cada passo».
  25. Quando se lida com uma canonização equivalente, ou seja, quando o papa se contenta em ratificar um culto já imemorial, a assistência divina se exerce através da atividade das causas segundas que difundiram e mantiveram esse culto por razões suficientemente fundadas. E, mesmo nesse caso, os milagres continuam como requerimento, com todo o examine que pressupõem. Até mesmo três são necessários, enquanto que dois bastam para uma canonização formal, após um processo. Cf. CDC de 1917, cânon 2138. O novo processo de 1983 não pede mais que um só nos dois casos.