O MODERNISMO DO PAPA JOÃO PAULO II – PARTE 1/3 – A IMANÊNCIA VITAL EM JOÃO PAULO II

Papa João Paulo II – Wikipédia, a enciclopédia livre

Conferência dada pelo Pe. Patrick de la Rocque, FSSPX, em novembro de 2007, na ocasião de um simpósio sobre a encíclica Pascendi Dominici Gregis.

Pe. de La Rocque, FSSPX (Atualmente Prior de Nice,  participou de discussões teológicas com Roma entre 2009 e 2011).

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

Dizer que o modernismo denunciado pela Encíclica Pascendi Dominici Gregis jamais esteve tão presente quanto esteve no Papa João Paulo II pode parecer severo. Essa afirmação, todavia, não passa de um eufemismo para qualquer pessoa familiarizada com o pensamento e os ensinamentos do falecido papa. Com efeito, se aceitarmos aquela definição fundamental do modernismo dada pelo Papa São Pio X, ou seja, da imanência vital que o caracteriza, devemos reconhecer em João Paulo II um papa profundamente modernista. Imanência vital: nenhum outro papa a ensinou mais do que ele. Parece-me possível até afirmar – sem a pretensão de demonstrar pormenorizadamente aqui – que essa imanência vital foi a fonte da qual se alimentou todo o pontificado de João Paulo II. Seja como for, sob a luz de tal critério os vinte e sete anos de seu soberano pontificado adquirem uma coerência notável.

Por enquanto, esta apresentação cuidará de discutir somente três pontos. Eu gostaria primeiramente de mostrar que João Paulo II se fez pregador explícito da imanência vital: alguns exemplos bastarão. Em seguida, decifraremos a leitura que ele fez, à luz da imanência vital, do dogma da Encarnação e depois por fim da Redenção. A conclusão então será imposta por si mesma: ao passar pelo humilhante itinerário da imanência, os dogmas católicos perdem sua própria substância. Nesse sentido, a evolução da teologia católica sob o pontificado de João Paulo II foi uma triste ilustração da constatação de São Pio X: o modernismo é o esgoto coletor de todas as heresias.

1) A imanência vital em João Paulo II

Deus misteriosamente presente no coração de cada ser humano

Que João Paulo II tenha ensinado o princípio de imanência vital é evidente. Tomemos por exemplo o discurso que proferiu junto aos cardeais da Cúria no dia seguinte a Assis, a fim de justificar seu gesto: “Toda oração autêntica é suscitada pelo Espírito Santo que está misteriosamente presente no coração de cada homem”[1]. Ele não diz mais que o Espírito Santo age pontualmente sobre o coração de cada homem por meio das graças atuais – o que a Igreja ensina –, mas sim que está misteriosamente presente no coração de todos os homens: isso é a afirmação do princípio de imanência vital.

A fim de dar uma nova ilustração disso, citemos a importante homilia que João Paulo II pronunciou aqui mesmo em Paris, durante sua primeira viagem à França. Foi na esplanada do aeroporto de Le Bourget, em 1 de junho de 1980. João Paulo II fez uma vibrante homenagem ao homem, baseado no princípio de imanência vital. Esse elogio destacou primeiro e antes de tudo a nobreza natural do homem. Dotado de inteligência e vontade, o homem é imagem de Deus. Ademais, enquanto ser criado, ele está presente desde toda a eternidade no pensamento divino. João Paulo II sublinha: “O homem está no coração do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e isso desde o começo. Ele não foi criado à imagem e semelhança de Deus? Fora disso, o homem não tem sentido. O homem só tem sentido no mundo como imagem e semelhança de Deus”[2]. Tudo isso é muito tradicional, mas não explica ainda o culto – sim, o culto[3] – que João Paulo II pretende prestar ao homem. Isso está enraizado em outra coisa, e essa coisa é precisamente o princípio da imanência vital. Ouçamos a continuação do discurso: “O homem… o elogio do homem… a afirmação do homem. Sim, a afirmação do homem todo, na sua constituição espiritual e corporal, naquilo que o manifesta como sujeito exterior e interiormente. O homem adaptado, na sua estrutura visível, a todas as criaturas do mundo visível e ao mesmo tempo interiormente ligado à sabedoria eterna[4]. O ser humano, em sua natureza concreta, está ao mesmo tempo adaptado ao mundo visível e ligado à sabedoria eterna. Ele é sujeito de relação não somente com o mundo exterior e visível, mas também com o próprio Deus. Essa relação com Deus é descrita como uma relação de amizade. Em seu ser mesmo, naquilo que o constitui como sujeito, o homem está ligado à sabedoria eterna: “ele está interiormente ligado à sabedoria eterna”. Está aí novamente afirmado com clareza o princípio de imanência vital. A consciência é então considerada como um santuário onde Deus está presente no homem, em todos os homens[5].

Deus escondido no coração de todas as culturas

O mesmo postulado de imanência funda ainda o respeito e a confiança que João Paulo II concedeu às várias religiões. Na sua opinião, a presença secreta e ativa de Deus vai além do homem individual, estendendo-se às culturas – e às religiões que constituem seu coração[6]. Não dizia João Paulo II em sua homilia em Le Bourget: “No coração da missão de Cristo está o homem, todo o homem. Através do homem existem as nações, todas as nações”? E ele continua seu sermão: “A aliança interior com a sabedoria encontra-se na base de toda a cultura e do verdadeiro progresso do homem[7]. João Paulo II repetiu com frequência essa afirmação, especialmente quando se dirigiu aos missionários que evangelizavam países de culturas não cristãs. Citemos um de seus discursos aos bispos da África do Norte: “A tarefa do apóstolo que assim encontrou Deus é de fazer com que seus irmãos saibam que Ele já está lá, escondido em meio aos povos, no coração de todas as culturas[8]. Ou ainda, em outra ocasião: “Se toda cultura precisa de conversão, favorecei essa conversão na esperança e no reconhecimento que Deus já está lá […] Aquele que propõe a Boa Nova convida as religiões não-cristãs a descobrir Cristo, mas ele também é chamado, pelos sinais da presença de Deus nessas religiões, a receber novos esclarecimentos a respeito das diferentes maneiras de viver enquanto homem, e portanto com Deus”[9].

Conhecemos o argumento usado para sustentar a tese da imanência divina em todas as religiões e culturas. Ele acredita encontrar fundamentos patrísticos no que os Padres chamavam de semina Verbi, sementes do Verbo. De que se trata? Porque o mal absoluto não existe, toda cultura tem sua parte de verdade. Longe de lhe ser própria, essa parte de verdade não é senão uma participação naquele que é a Verdade mesma, o Verbo eterno.  Verdades naturais ou restos de verdade derivados da verdadeira religião, essas semina Verbi certamente eram consideradas pelos Padres da Igreja como um bem, mas de maneira alguma consideraram uma presença efetiva e sobrenatural de Deus, longe disso. Com efeito, e os Padres da Igreja estavam conscientes de que não foi a todas as religiões, mas somente aos apóstolos, base da Igreja católica, que Cristo dirigiu sua promessa: “Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt. 28, 20). Também essas semina Verbi eram para os Padres somente uma participação natural na verdade divina, que não implicava uma presença de Deus na alma. Esta última, dada somente pela graça sobrenatural, estava claramente distinguida. O exemplo de São Justino, o mais citado nesse assunto, é luminoso: “Eu sou cristão, eu me honro no cristianismo, eu o confesso, e todo meu desejo é de ser reconhecido como tal. Não é que a doutrina de Platão seja incompatível com a de Cristo, mas ela não tem tanta similaridade com ela, não mais que a dos outros, tais como estóicos, poetas e escritores. Cada um deles, com efeito, viu no Verbo divino disseminado no mundo aquilo que estava relacionado à sua natureza, e puderam assim exprimir uma verdade parcial […] Tudo o que eles ensinaram de bom pertence a nós cristãos. Porque segundo Deus nós adoramos e amamos o Verbo nascido do Deus eterno e inefável, visto que Ele se fez homem por nós, a fim de curar nossos males participando dele. Os escritores puderam ver indistintamente a verdade, graças à semente do Verbo que foi posta neles. Mas uma coisa é possuir uma semente e uma semelhança proporcionada às suas faculdades, outra o próprio objeto cuja participação e a imitação procedem da graça que vem Dele[10]. Portanto, é mentira afirmar que a Tradição da Igreja acreditou, sob o manto das semina Verbi, na presença imanente e ativa do Espírito Santo em todas as culturas. No entanto, João Paulo II não se privou de tal afirmação: “Nelas [nas religiões não-cristãs] encontram-se as ‘semina Verbi’ o esplendor da única verdade’ da qual falavam os primeiros Padres da Igreja, que vivem e agem no ambiente do paganismo”. As últimas palavras são determinantes: elas identificam as semina Verbi com uma presença viva e ativa de Deus. Essa presença viva e ativa de Deus dentro do paganismo seria repetida novamente no discurso de 22 de dezembro de 1986 aos membros da Cúria para justificar Assis: “Todos aqueles que não receberam ainda o Evangelho estão ‘ordenados’ à unidade suprema do único Povo de Deus [..] É precisamente o valor real e objetivo dessa ‘ordenação’ à unidade do único Povo de Deus, frequentemente escondida aos nossos olhos, que pôde ser reconhecido no Encontro de Assis e na oração com os representantes cristãos; é a profunda comunhão que existe já entre nós em Cristo e no Espírito, viva e operante, embora incompleta, que teve uma de suas particulares manifestações”[11].

Conclusão

Portanto, falar de imanência divina secretamente escondida no coração de todas as religiões não tem nenhum apoio na Tradição, muito pelo contrário. Seu único fundamento é a doutrina modernista da imanência vital, infelizmente bem vista por João Paulo II.

Diante dessa perspectiva imanentista, a teologia católica relativa à Encarnação redentora apresenta um duplo problema. Como admitir primeiramente a necessidade de um mediador exterior à consciência humana? Dizer que o homem deve passar por um outro para encontrar a Deus não é diametralmente oposto ao princípio de imanência? Nesse sentido, a cristologia tradicional causa incômodo. E depois, como admitir que o homem precisa ser resgatado para se unir a Deus? Isso quer dizer que não somente ele não está automaticamente unido a Deus, mas que ele nem sequer merece essa união. Eis uma nova contradição do princípio de imanência. Adivinhemos: os dogmas da Encarnação e da Redenção serão profundamente revisitados pelo pensamento modernista. E, no que nos diz respeito, pelo ensinamento de João Paulo II.

(Continua…)

Notas

  1. João Paulo II, discurso de 22 de dezembro de 1986 aos cardeais da Cúria, nº 11, DC 1987, n° 1933, p. 133–136.
  2. João Paulo, homilia de 01 de junho de 1980 na missa em Bourget, nº 4, DC 1980, n° 1788, p. 585–586.
  3. “E nós, exclamou Paulo VI em nome de todos os Padres do Concílio Ecumênico do qual eu próprio fui membro, nós mais do que ninguém somos cultores do homem (Discurso de encerramento de 1965)” (João Paulo II, carta de 20 de maio de 1982 ao cardeal Casaroli, DC 1982, n° 1832, p. 604–606.
  4. João Paulo, homilia de 01 de junho de 1980 na missa em Bourget, nº 4, DC 1980, n° 1788, p. 585–586.
  5. Cf. João Paulo II, discurso de 05 de outubro de 1995 à Assembleia geral das Nações Unidas, DC 1995, n° 2125, p. 917–923: “A esperança e a confiança são as premissas de uma atividade responsável e encontram sua fonte no santuário íntimo da consciência, onde o homem «está só com Deus»”.
  6. Cf. João Paulo II, discurso de 05 de outubro de 1995 à Assembleia geral das Nações Unidas, DC 1995, n° 2125, p. 917–923: “Além de todas as diferenças que caracterizam os indivíduos e os povos, há entre eles uma afinidade fundamental, já que as várias culturas não são na realidade senão modos diversos de abordar a questão do significado da existência pessoal […] toda cultura é um esforço de reflexão sobre o mistério do mundo e, em particular, do homem: é um modo de expressar a dimensão transcendente da vida humana. O coração de cada cultura está constituído por sua aproximação ao maior dos mistérios: o mistério de Deus”. Uma dupla afinidade fundamental é aqui descrita: afinidade de aspiração (“modos diversos de abordar a questão do significado da existência pessoal”) e afinidade de resposta: toda cultura “ é um modo de expressar a dimensão transcendente da vida humana. O coração de cada cultura está constituído por sua aproximação ao maior dos mistérios: o mistério de Deus”. A aproximação é aqui supostamente efetiva, visto que ela exprime de fato a transcendência da pessoa humana, ou seja, a imanência divina nela.
  7. João Paulo, homilia de 01 de junho de 1980 na missa em Bourget, nº 4, DC 1980, n° 1788, p. 585–586.
  8. João Paulo II, discurso de 23 de novembro de 1991 aos bispos da África do Norte. Insignamenti, 1991, XIV/1, pp. 1275–1279.
  9. João Paulo II, discurso de 13 de maio de 1989 à Sociedade das Missões Africanas, DC 1989, n° 1987, p. 623–624.
  10. São Justino, 2ª Apologia, nº 13.
  11. João Paulo II, discurso de 22 de dezembro de 1986 aos cardeais da Cúria, nº 11, DC 1987, n° 1933, p. 133–136.