PARA UMA JUSTA REAVALIAÇÃO DO VATICANO II: A TRADIÇÃO E O MAGISTÉRIO CLARAMENTE DEFINIDOS

Concílio trouxe maior participação dos leigos na missão de evangelizar -  Vatican NewsFonte: Courrier de Rome  n.º 322, maio de 2009 – Tradução: Dominus Est

Autor: Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Por meio de um decreto da Congregação para os Bispos do dia 21 de janeiro de 2009[1], Bento XVI “levantou a excomunhão”[2] sofrida em 1988 pelos quatro bispos da Fraternidade São Pio X. Apenas uma semana depois, durante a Audiência geral de quarta-feira, 28 de janeiro[3], o papa julgou que deveria explicar o sentido desse decreto, dizendo que quisera realizar «um ato de misericórdia paternal», acrescentando que ele esperava da parte dos bispos consagrados por Mons. Lefebvre «um verdadeiro reconhecimento do magistério e da autoridade do papa e do concílio Vaticano II».

Razões profundas de um antagonismo

As palavras de Bento XVI ecoam as de Paulo VI e de João Paulo II. Com efeito, duas frases se mantêm na memória de todos. «Como hoje alguém poderia se comparar a Santo Atanásio, ousando combater um concílio como o segundo concílio do Vaticano, que não possui menos autoridade, e que inclusive, sob certos aspectos, é mais importante ainda que aquele de Niceia?»[4]. Essa censura lançada pelo papa Paulo VI em 1975 é reiterada de maneira ainda mais precisa pelo papa João Paulo II, após Mons. Lefebvre ter evocado o estado de necessidade na Igreja para se dar o direito de consagrar os quatro bispos em 30 de junho de 1988. No motu proprio Ecclesia Dei afflicta, que excomunga Mons. Lefebvre, o papa João Paulo II declara: «A raiz deste ato cismático pode localizar-se numa incompleta e contraditória noção de Tradição. Incompleta, porque não tem em suficiente consideração o carácter vivo da Tradição»[5].

A recente declaração do Papa Bento XVI

Ao pedir à Fraternidade São Pio X que reconhecesse a autoridade do Concílio Vaticano II, Bento XVI confirma então a análise de seus dois predecessores e parece manter o postulado deles com essa nova noção de uma tradição viva. Na famosa carta de 10 de março de 2009 ele revisita o assunto: «Pretendo, no futuro, vincular a Comissão Pontificial “Ecclesia Dei” – que desde 1988 é responsável por essas comunidades de pessoas que, vindo da Fraternidade São Pio X ou de outros grupos similares, querem voltar à plena comunhão com o Papa – à Congregação para a Doutrina da Fé. Parece evidente que os problemas a serem tratados agora são de natureza essencialmente doutrinal, em particular aqueles concernentes à aceitação do concílio Vaticano II e o magistério pós-conciliar dos papas. […] Não podemos congelar a autoridade do magistério da Igreja em 1962: isso deve estar muito claro para a Fraternidade»[6]. Mas, desta vez, Bento XVI acrescenta uma reflexão que não deve deixar ninguém indiferente: «Não obstante, para alguns daqueles que se proclamam grandes defensores do Concílio, devemos lembrar que o Vaticano II contém em si a história doutrinal inteira da Igreja. Aquele que quer obedecer ao Concílio deve aceitar a fé professada ao longo dos séculos e não pode cortar as raízes que dão vida à árvore»[7].

A fé professada ao longo dos séculos é a forma de exercício do magistério mais visível, mais frequente e a mais acessível aos espíritos. É ela que tem lugar quando o papa e os bispos transmitem o conjunto das verdades reveladas no âmbito da sua pregação cotidiana: é o exercício do magistério ordinário universal. O exercício do magistério solene (aquele dos concílios ecumênicos ou do papa falando ex cathedra) é sem dúvidas a forma mais evidente do magistério, aquele que em princípio se reveste da maior visibilidade; mas esse exercício é raro. O exercício do magistério ordinário universal é muito mais frequente, e age mais intensamente sobre os espíritos – é isso que acontece com o exercício do novo magistério ordinário pós-conciliar, que ecoa cotidiana e incessantemente o Vaticano II. Isso demonstra toda a importância da declaração do papa Bento XVI: como concebe ele «a fé professada ao longo dos séculos»? Haveria, nessa declaração, uma alusão ao magistério constante da Tradição da Igreja, e Bento XVI quer colocar fim no antagonismo criado por seus dois predecessores, corrigindo o concílio Vaticano II à luz da Tradição? Ou, ao contrário, Bento XVI reafirma algo completamente contrário, o postulado da tradição viva?

Para responder a essa questão, começaremos por relembrar a definição do ato do magistério universal (1ª parte). Depois estudaremos sua propriedade, que é a infalibilidade (2ª parte). Por fim, tentaremos ver a que corresponde o magistério no pensamento de Bento XVI (3ª parte) antes de dar uma resposta a modo de epílogo.

Primeira Parte: A definição do magistério ordinário e universal[8]

O ato infalível do magistério é exercido por todo o corpo episcopal, portanto pelo papa tendo sob si os bispos conforme duas circunstâncias diversas. A constituição dogmática Dei Filius do Vaticano I (DS 3011) ensina que a Igreja docente exige da Igreja discente a submissão de um ato de fé em duas circunstâncias: circunstância dos juízos solenes e circunstância do magistério ordinário universal. O papa Pio IX (DS 2879) afirma que o magistério da Igreja docente exerce três atos infalíveis diferentes em três circunstâncias diferentes: a distinção feita aqui é no nível dos juízos solenes, que se distingue entre as definições solenes dos concílios ecumênicos e as definições solenes do papa falando ex cathedra; e Pio IX distingue ainda em Deus Filius essas duas primeiras como circunstâncias de uma terceira: a do magistério ordinário do episcopado disperso.

Existe, portanto, um magistério ordinário universal. E esse magistério propõe infalivelmente dogmas de fé divina e católica. Pio XII o afirma explicitamente na bula Munificentissimus Deus de 1 de novembro de 1950. O papa faz alusão à consulta que se deu em 1 de maio de 1946 por meio da carta Deiparae Virginis Mariae. «Essa singular concordância dos bispos e fiéis[…], mostra-nos a doutrina concorde do magistério ordinário da Igreja, e a fé igualmente concorde do povo cristão – que aquele magistério sustenta e dirige – e por isso mesmo manifesta, de modo certo e imune de erro, que tal privilégio é verdade revelada por Deus e contida no depósito divino que Jesus Cristo confiou à sua Esposa para o guardar fielmente e infalivelmente o declarar». 

Qual é a circunstância que distingue o ato do magistério solene daquele do magistério ordinário? O Vaticano I definiu que a Igreja discente deve crer como sendo de fé o que lhe ensina o magistério ordinário universal, mas nada disse sobre a natureza desse magistério.

1.1 – Busca dos elementos da definição

a) Alguns esclarecimentos autorizados

Durante o concílio Vaticano I, em discurso de 6 de abril de 1870[9] pronunciado em nome da Deputação da Fé (ou seja, da Santa Sé), Mons. Martin dá dois esclarecimentos importantes sobre o texto da definição de Dei Filius em DS 3011:

1º esclarecimento: «Que não se pense que falamos aqui do magistério infalível da Santa Sé apostólica opondo-o ao magistério infalível aos concílios ecumênicos». O magistério ordinário universal referido nesta passagem não é o magistério solene da locutio ex cathedra, em contraste com o magistério solene do concílio ecumênico. É uma terceira categoria de magistério, que é precisamente «ordinário» e não solene.

2º precisão: «A palavra “universal” significa geralmente a mesma coisa que a palavra usada pelo Santo Padre [Pio IX] na Encíclica Tuas libenter, a saber, o Magistério de toda a Igreja disseminada sobre a terra».

Há, portanto, dois elementos específicos: é um magistério ordinário e é um magistério universal.

b) Os dois elementos específicos do magistério ordinário universal

Chama-se magistério ordinário o ensinamento que é dado fora da circunstância excepcional do concílio ecumênico ou da locutio ex cathedra. O magistério ordinário é exercido todos os dias[10] pela pregação habitual dos pastores, enquanto que o magistério solene é exercido raramente.

Chama-se magistério universal os ensinamentos que o papa, e sob ele os bispos, exercem de maneira concordante e unânime quando eles estão reunidos não em concílio, mas dispersos ao longo do universo católico, com o papa ensinando a Igreja universal desde Roma e cada bispo ensinando seu rebanho particular, em conformidade com sua jurisdição restrita e subordinada. O padre Vacant[11] destaca a distinção entre o magistério ordinário universal e o magistério ordinário próprio do papa: a infalibilidade deste é uma simples hipótese, em favor da qual Vacant opina, enquanto que a infalibilidade daquele é imposta pelo papa Pio IX em Dei Filius e Tuas libenter.

Para ser universal, o magistério ordinário deve cumprir duas condições; deve ter universalidade no espaço, ou unanimidade do episcopado disperso; deve ter universalidade no tempo, ou constância do assunto ensinado. Os dois, a unanimidade e a constância, são requeridos pela universalidade que define formalmente o magistério ordinário universal.

A unanimidade diz respeito ao sujeito que ensina: é uma universalidade que tem lugar no espaço (porque são todos os bispos da terra que são unânimes quando não estão reunidos em concílio, mas dispersos), e ela é verificada em uma determinada época da história (é, por exemplo, aquela unanimidade dos bispos tal como o papa Pio XII constata em 1 de maio de 1946). O magistério ordinário universal é a expressão do magistério que é pregado oralmente e é por isso que a unanimidade que ele produz é a unanimidade de toda a terra e num instante presente, aqui e agora. Se, ao nos colocarmos desde o ponto de vista do sujeito, dissermos que o magistério ordinário universal é a unanimidade de todos os bispos e de todos os papas desde São Pedro e os apóstolos, corremos o risco de alterar a noção mesma de magistério ordinário, que é pregado oralmente, para substituí-lo pela noção de um magistério póstumo, que é exercido sobretudo por escrito[12].

A constância, por outro lado, diz respeito ao assunto ensinado: é uma universalidade que ocorre não somente no espaço (porque lida com uma doutrina que é ensinada por todos os bispos da terra), mas também no tempo (porque lida com uma doutrina que é ensinada por todos os bispos da terra em todas as épocas da história). O magistério ordinário universal é a proposição da doutrina revelada. Ora, essa doutrina é substancialmente imutável, o que quer dizer que ela permanece inalterada no tempo e no espaço. O magistério ordinário universal é por definição um magistério tradicional: é um magistério que se prega hoje e que, por definição, não pode estar em desacordo com o magistério de ontem.

Há uma ordem nessa dupla universalidade. Em si mesma, a universalidade no âmbito do assunto tratado, que é a constância no tempo, precede a universalidade no âmbito do sujeito, que é a unanimidade no espaço, porque é primeiro o assunto em questão que especifica um ato. Os bispos não podem estar atualmente em acordo entre si aqui e agora, com o propósito de constituir o magistério ordinário universal, se eles não estiverem primeiro de acordo com toda a Tradição que lhes precedeu no passado.

Acrescentemos um terceiro elemento, que é um sinal ao qual podemos reconhecer o ensinamento desse magistério ordinário universal. Esse elemento é indicado por Pio IX em Tuas libenter, quando ele diz que o acordo unânime e constante dos teólogos é o sinal pelo qual se reconhece as verdades que são propostas como dogmas pelo magistério ordinário da Igreja dispersa[13].

c) Os modos concretos de exercício

Os modos concretos de exercício desse magistério ordinário são variáveis[14]. De maneira direta e imediata, o magistério pode ser exercido tanto pela pregação oral quanto pela escrita. A pregação oral do papa pode assumir muitas expressões, tais como as alocuções consistoriais reservadas aos cardeais ou aos bispos, os sermões ou homilias destinados ao povo católico considerado conjuntamente, aos quais se acrescentam nos nossos dias as mensagens radiofônicas ou televisionadas. A pregação oral dos bispos pode assumir muitas formas, e deve-se incluir não somente tudo o que ele prega por si mesmo, mas ainda tudo o que ele pode pregar por meio de seus representantes (párocos, professores nos seminários ou nas faculdades de ensino católico, pregadores de retiro, etc.). Quanto à pregação por escrito, ela corresponde às cartas encíclicas do papa, aos decretos doutrinais do Santo Ofício, às respostas da comissão bíblica, às cartas pastorais dos bispos, etc.

De maneira indireta e intermediária, o magistério ordinário universal pode ser exercido através da aprovação explícita (de um Imprimatur ou de um Nihil obstat) que é dada aos catecismos, aos vários manuais usados em seminários e escolas católicas, aos escritos dos teólogos e aos decretos doutrinais dos concílios particulares. O magistério ordinário universal pode ainda ser exercido de maneira indireta através da aprovação implícita que é dada pelo próprio fato do uso, seja de uma doutrina especulativa, como a dos Padres da Igreja ou dos teólogos, seja de uma disciplina prática, como a da liturgia ou do direito.

Como exemplos do magistério ordinário imediato pela pregação escrita podemos citar a encíclica Diuturnum illud, de 29 de junho de 1881, onde Leão XIII ensina a origem do poder civil apoiando-se nas escrituras (DZ 3151); a encíclica Arcanum, de 10 de fevereiro de 1880, do mesmo Leão XIII que ensina a instituição divina e indissolúvel do casamento, assim como o direito de supervisão exclusivo da Igreja sobre esse sacramento (DZ 3142-3143); a encíclica Providentissimus, de 18 de novembro de 1893, onde ainda Leão XIII ensina como sendo de fé divina e católica a noção de inspiração e inerrância (DZ 3293); a encíclica Immortale Dei, de 1 de novembro de 1885, onde Leão XIII ainda ensina a independência absoluta da Igreja em relação a todo poder civil (DZ 3168-3169); a Profissão de fé do papa Pio IV, de 13 de novembro de 1564 (DZ 1862-1870); o Juramento antimodernista, de 1 de setembro de 1910 (DZ 3537-3550). Na liturgia podemos citar: o dogma da Santíssima Trindade (Prefácio da festa e todo o ofício do breviário da festa); o dogma da virgindade da Mãe de Deus (em todo o ofício da Natividade); o dogma da graça, especialmente contra o pelagianismo e o semi-pelagianismo (nas orações do missal, especialmente após Pentecostes); o dogma do Purgatório (liturgia dos defuntos).

1.2 – Definição

O magistério ordinário e universal não é um ato, mas um conjunto de atos pelos quais o papa e os bispos (Igreja docente) ensinam infalivelmente os fiéis (Igreja discente). Eles não ensinam como causas parciais e concorrentes do mesmo ato, como é o caso do concílio; senão que cada um ensina sendo ele mesmo causa total do seu próprio ato.

É tripla a diferença entre o magistério solene do concílio e o magistério ordinário universal. Os dois ensinamentos não se diferenciam no âmbito da matéria do ato, que é nos dois casos o objeto da fé. Há, em primeiro lugar, uma diferença acidental que decorre da intenção do sujeito que exerce o magistério (o finis operantis).  Em seguida, decorrem duas diferenças essenciais: uma do fim próprio e objetivo do ato (o finis operis do ato, ou seja, seu objeto formal) e a outra do sujeito que exerce o ato.

Donde se pode resumir:

1ª diferença acidental segundo a intenção do autor do ato, ou segundo o finis operantis que é uma circunstância do ato;

2ª diferença essencial segundo o objeto formal do ato ou segundo o finis operis;

3ª diferença essencial segundo o sujeito que exerce o ato.

1.2.1 – Primeira diferença acidental quanto à intenção do autor do ato

A diferença é o fato de querer ou não colocar um fim a uma controvérsia. Os bispos exercem mais frequentemente o ato de magistério ordinário quando eles ensinam o objeto da fé por si mesmo, fora de toda controvérsia. Os bispos exercem o ato de magistério solene em concílio mais frequentemente quando eles ensinam o objeto da fé para condenar um erro, e portanto para colocar fim oficial a uma controvérsia.

Essa diferença existe, mas ela é acidental. Não é isso que explica a natureza profunda do magistério ordinário universal, oposta à natureza do magistério solene de um concílio ecumênico. Se virmos nisso a diferença essencial, diríamos que os bispos exercem o magistério ordinário universal sempre que ensinam pacificamente: não importa se estão reunidos em concílio ou se estão dispersos; em tal caso, poderia haver magistério ordinário em um concílio – embora de fato jamais houve, até o Vaticano II, um magistério conciliar que não fosse solene[15]. Esse ponto de vista é defendido por todos aqueles que querem fazer do Concílio Vaticano II um concílio infalível. Com efeito, o papa Paulo VI declarou em duas ocasiões[16] que o concílio «evitou promulgar definições dogmáticas solenes empenhando a infalibilidade do magistério eclesiástico» e simplesmente quis dotar seus ensinamentos com «a autoridade do magistério ordinário supremo, manifestamente autêntico»[17].

Se pressupormos que o magistério ordinário universal infalível pode ser exercido tanto quando os bispos e o papa estão dispersos como quando eles estão reunidos em concílio, um concílio ecumênico poderia então exercer dois tipos de ensinamento magisterial infalível: o magistério solene e o magistério ordinário universal. Visto que as declarações de Paulo VI excluem a possibilidade de um ensinamento do magistério solene no Vaticano II, aqueles que querem a qualquer custo que seus ensinamentos sejam infalíveis, são obrigados a ver nele o ensinamento do magistério ordinário universal.

Alguns concluirão que os ensinamentos desse concílio impõem-se irrestritamente à adesão de fé de todos os fiéis. Outros concluirão que os ensinamentos desse concílio, supostamente infalível, estando em clara contradição com os dogmas de fé anteriormente definidos, encontram-se diante de uma contradição escapável somente pelo sedevacantismo, ou seja, restaria dizer que o papa e os bispos perderam sua legitimidade desde o momento em que o Vaticano II definiu heresias.

Da nossa parte, acreditamos que o concílio Vaticano II é um concílio ecumênico legitimamente convocado, instrumento de um eventual exercício do magistério solene e que ele não poderia se equiparar a um instrumento do magistério ordinário universal; o papa Paulo VI, ao ter renunciado explicitamente a exercer o magistério solene, fez com que os ensinamentos próprios do Vaticano II não estivessem revestidos de infalibilidade, e desde então eles não ecoaram o magistério infalível e tradicional anterior.

1.2.2 – Segunda diferença essencial quanto ao objeto formal do ato

A diferença é o fato de enunciar ou não uma definição. Os bispos reunidos pelo papa em concílio propõem o objeto da fé definindo-o, enquanto que o episcopado disperso propõe o objeto da fé sem, no entanto, defini-lo. Nos dois casos, o ensinamento é infalível quanto ao sujeito que ensina; e quanto ao assunto ensinado, ele enuncia um dogma. Há diferença, contudo, pois não é a mesma maneira de ensinar nos dois casos.

Com efeito, na carta Tuas libenter ao arcebispo de Munique, o papa Pio IX, quando fala dos dogmas de fé divina, reserva ao magistério solene definir os dogmas («expressis decretis definitia sunt»), enquanto que ele atribui ao magistério ordinário universal o cuidado de transmiti-los («traduntur») e de conservá-los («retinetur»).

«De fato, mesmo que se tratasse daquela submissão que se deve prestar com ato de fé divina, ela todavia não se deveria limitar àquelas coisas que foram definidas com decretos explícitos, que por meio do magistério ordinário de toda a Igreja difundida sobre a terra são transmitidas como divinamente reveladas e, portanto, por universal e constante consenso, pelos teólogos católicos são conservadas como pertencentes à fé» (Dz 2879).

Qual a diferença entre «definir» e «transmitir»? Quando define, o papa não somente enuncia uma proposição que é formalmente revelada; ele enuncia precisamente, primeiro e antes de tudo, que a proposição formalmente revelada, até aqui transmitida pelo magistério ordinário da Igreja, é formalmente revelada indiscutivelmente; e ele o faz dizendo precisamente que esse assunto, enquanto ensinado pela Igreja[18], faz parte do depósito das verdades reveladas. O ato da definição é um juízo em que: 1) o sujeito é a proposição dogmática já ensinada até aqui no âmbito do magistério ordinário universal (por exemplo, o dogma da Imaculada Conceição, tal como transmitido no ensinamento ordinário do papa e dos bispos em cada época da história); 2) e o predicado é a inclusão no depósito da revelação divina. É um ato refletido, e isso quer dizer que ele supõe (como sujeito da enunciação que ele formula) um outro ato, que é precisamente o ato do magistério ordinário universal.

Por outro lado, quando o papa e os bispos propõem o objeto da fé sem fazer distinção, seu juízo consiste simplesmente em enunciar o objeto revelado, de maneira direta. O ato do magistério universal é a enunciação mesma de um mistério da fé. A verdade revelada aparece primeiro e antes de tudo em sua inteligibilidade imediata, tal como a apresenta o magistério da Igreja[19]; ela aparece como formalmente revelada de maneira somente indireta e explícita. Nesse caso, é dito precisamente que o papa e os bispos transmitem o depósito da revelação[20].

Nos dois casos, magistério ordinário universal e magistério solene, o objeto do ato é um dogma de fé infalivelmente proposto. É o ensinamento explícito de Dei Filius (DS 3011): «deve-se crer com fé divina e católica todas aquelas coisas que estão contidas na Palavra de Deus, escrita ou transmitida por Tradição, e que a Igreja nos propõe, ou por definição solene, ou pelo magistério ordinário universal, a serem cridas como divinamente reveladas». O padre Vacant sublinha: «O [primeiro] concílio do Vaticano coloca no mesmo nível o magistério ordinário e os juízos solenes, sem fazer qualquer distinção entre as verdades que o constituem. Os teólogos fazem o mesmo. Portanto, o magistério ordinário possui autoridade suficiente para tornar de fé [divina e] católica uma verdade que não o era»[21]. A diferença é que o magistério solene dá à verdade a nota «de fé divina e católica definida» enquanto que o magistério ordinário universal lhe deixa a simples nota «de fé divina e católica».

Para que uma verdade seja um dogma é necessário e suficiente que ela mereça a nota «de fé divina e católica». Mas há duas categorias de dogma: dogma de fé divina e católica e dogma de fé divina e católica definido. O padre Vacant[22] pensa que a diferença entre dogma definido e dogma não definido está no nível da censura contrária: contradizer um simples dogma merece uma censura inferior à heresia (em geral: «próximo de heresia»); enquanto que contradizer um dogma definido corresponde à censura de heresia. Essa opinião do padre Vacant não é compartilhada por outros teólogos: o padre Salaverri[23], o padre Cartechini[24] e o Sommaire de théologie dogmatique dos padres Panneton et Bourgeois[25] consideram que a nota de heresia é merecida por toda proposição contrária ao dogma, quer seja o dogma definido ou não.

Disso conclui-se que entre o magistério ordinário universal e o magistério solene não há uma diferença formal unívoca. São dois atos complementares: o ensino solene «propõe» (ou causa a visibilidade) mais plenamente que o ensino ordinário. Há entre os dois uma diferença de grau. Contudo, não esqueçamos que essa não é a diferença que existe entre dois atos. É a diferença que existe entre um ato e um conjunto de atos.

1.2.2 – Terceira diferença essencial quanto ao sujeito que exerce o ato

A diferença é o fato de estar ou não reunido em concílio. Os bispos exercem o ato de magistério solene quando eles ensinam estando em conjunto num concílio. Eles são então parte de um conjunto – são, então, causas parciais de maneira proporcional, ou seja, todos sob a autoridade de um dentre eles, que é o papa. Assim, eles causam um só e o mesmo ato[26]. De facto isso ocorre, na maioria das vezes, para dirimir uma controvérsia.

Os bispos exercem o ato de magistério ordinário quando ensinam de maneira dispersa. Cada bispo ordinário exerce, como causa total, todo um conjunto de atos de ensino como chefe do seu rebanho. A unanimidade constante de todos esses atos singulares de ensino de todos os bispos, incluindo o papa, constitui um critério da Revelação. De facto, na maioria das vezes, isso ocorre sem controvérsia.

1.3 – Conclusão

O magistério ordinário universal é expressão suficiente da pregação eclesiástica, que possui por si mesma toda a autoridade requerida para impor as verdades divinamente reveladas como dogmas, cuja profissão é necessária à salvação. Mas o magistério ordinário mantém-se também em estreita relação com o magistério solene. O padre Timóteo Zapelena [27] destaca corretamente que não se deve separar muito essas duas formas da pregação eclesiástica e que é preciso antes associá-las estreitamente, visto que se completam.

Com efeito, o magistério ordinário universal é um grandíssimo auxílio na preparação das definições do magistério solene e para explica-lo na ocasião de sua publicação; por outro lado, o juízo solene pode, em certos casos, esclarecer a pregação do magistério ordinário universal, quando este estiver sob os ataques da heresia – dando-lhe não propriamente mais autoridade, mas mais resplendor, ou seja, uma maior visibilidade.

O vínculo que existe entre as duas formas da pregação eclesiástica tem sua importância, visto que ele manifesta a profunda natureza dessa pregação, que é a de um magistério tradicional e constante. Em particular, o magistério solene de um concílio ecumênico deve se apoiar sobre a pregação do magistério ordinário universal e não pode contradizê-lo, nem mudá-lo substancialmente.

Continua…

Notas

  1. DC nº 2419, p. 236.
  2. Apenas retomamos aqui a própria expressão do papa Bento XVI, que indica sua intenção.
  3. DC nº 2419, p. 242.
  4. «Carta de Paulo VI a Mons. Lefebvre de 29 de junho de 1975» em Itinéraires. La condamnation sauvage de Mgr Lefebvre, número especial suplementar (dezembro de 1976), p. 67.
  5. João Paulo II, «Motu proprio Ecclesia Dei afflicta, §4» em DC n° 1967, p. 788.
  6. Bento XVI, «Carta de 10 de março de 2009 aos bispos da Igreja católica» em DC nº 2421, p. 319-320.
  7. Ibidem, p. 320.
  8. A referência fundamental sobre toda essa questão é Jean-Michel Vacant, Études théologiques sur les constitutions du concile du Vatican, vol. 2, artigos 107-111, §§ 621-662.
  9. Mansi, tomo 51, coluna 322, A17-C1.
  10. O Padre Ramirez (De Fide divina, § 83, p. 78) fala de «magistério cotidiano» (quotidianum) em vez de utilizar a expressão «magistério ordinário».
  11. Vacant, ibid. §624. «Poderia o papa exercer o magistério ordinário sem os bispos, como ele faz sem eles nas definições solenes infalíveis? Nós cremos que sim. Mas o magistério ordinário do qual nos fala a carta de Pio IX ao arcebispo de Munique e a constituição Dei Filius é aquele que é exercido pelo papa e os bispos em conjunto. Com efeito, Pio IX chama-o de magistério ordinário de toda a Igreja dispersa sobre a terra, “totius Ecclesiæ per orbem dispersæ magisterio”; e ao propor ao Concílio Vaticano I que acrescentasse às palavras “magistério ordinário” o qualificativo de “universal”, Mons. Martin declarava que essa fórmula exprime em geral a mesma coisa que aquela de Pio IX».
  12. O magistério póstumo é a repetição do ensinamento anterior dado com autoridade pelo magistério autêntico, após a conclusão deste; é exercido por escrito. O magistério vivo é o exercício sempre atual do magistério autêntico; ele é exercido principalmente pela pregação oral de modo auxiliar por escrito. O catolicismo não é uma «religião do Livro»; é uma religião da Tradição Oral. O magistério eclesiástico é exercido de viva voz, à cada época da história, pela pregação oral dos ministros legítimos. Assim, ele é distinto do magistério póstumo, pois neste o ministro pode continuar a exercê-lo após a sua morte por meio dos seus escritos. Essa noção de magistério póstumo é aquela que se encontra também entre os protestantes. Para Lutero, Cristo instituiu um magistério vivo e autêntico em que o sujeito único e exclusivo foi o colégio apostólico; os apóstolos exerceram o magistério primeiro oralmente pregado e depois por escrito, fazendo o trabalho de hagiógrafos inspirados; uma vez terminado o cânon das Escrituras, o magistério vivo cessa e a única testemunha das Escrituras é cada fiel que pode interpretá-las, sendo imediatamente esclarecido pelo Espírito Santo. Ver Timóteo Zapelena, SJ, De Ecclesia Christi, 1954, t. 2, thèse 16, § 1, p. 120-121.
  13. «… quæ ordi nario totius Ecclesiæ per orbem dispersæ magisterio tanquam divinitus revelata traduntur ideoque universali et constanti consensu a catholicis theologis ad fidem pertinere retinentur».
  14. Vacant, ibid. §§ 650-657; Timóteo Zapelena, S.J., De Ecclesia, 1954, t. 2, tese 17, § 3, p. 185-186.
  15. Os partidários dessa tese (principalmente os sedevacantistas) invocam como argumento o discurso de Mons Martin, de 6 de abril de 1870 (Mansi, 51/322) que explica a adição da palavra «universal» em Dei Filius (Dz 3011). Mas o texto não é ad rem.
  16. Discurso do Papa Paulo VI na última sessão pública do Concílio Vaticano II, terça-feira, 7 de Dezembro de 1965, Acta Apostolicae Sedis 58 (1966), p. 51; Audiência geral, dia 12 de janeiro de 1966. Disponível em http://www.vatican.va/content/paul-vi/it/audiences/1966/documents/hf_p-vi_aud_19660112.html.
  17. Pela expressão «Magistério autêntico» os teólogos entendem hoje comumente o ensinamento de um Magistério não infalível.
  18. Por exemplo, Pio IX em DZ 2803 enuncia: «definimus doctrinam quæ tenet… esse a Deo revelatam atque idcirco ab omnibus fidelibus firmiter constanterque tenendam».
  19. Vacant, ibid. § 650, p. 110. «A infalibilidade é assegurada ao magistério ordinário somente na medida em que ele ensina propondo, por meio do papa ou do corpo episcopal disperso agindo em virtude de sua plena autoridade, uma verdade à crença da Igreja».
  20. Para entender melhor, poderíamos dar exemplos apoiando-se em dois outros casos parcialmente semelhantes e supostamente mais conhecidos. Na filosofia são feitas duas distinções clássicas. A primeira distinção ocorre entre dois tipos de operação: a operação in actu signato e a operação in actu exercito. Essa distinção é explicada, por exemplo, no comentário de Caetano à Suma teológica, Primeira parte, questão 16, artigo 2, n.º 6. O ato significado é um ato de intenção segunda e ele supõe o ato exercido, que é um ato de intenção primeira. Essa relação entre significado e exercido é comparável (remetendo a uma segunda distinção ainda mais bem conhecida) à relação que existe entre o exercício da ciência em sentido estrito e o exercício do senso comum. A semelhança que permite relacionar essas três comparações é a seguinte: temos nos três casos o enunciado cru de um fato («quia») e o enunciado do mesmo fato sob a luz do princípio do qual decorre esse fato («propter quid»). Dito isso, podemos falar (de certo modo) que o ato do magistério solene está para o magistério ordinário universal como o ato significado está para o ato exercido, ou seja, como o ato científico está para o ato do senso comum.
  21. Id., ibid., § 662, p. 120. O padre Vacant fala abreviadamente de «fé católica», utilizando uma terminologia diferente daquela de Dei Filius. Com efeito, a terminologia varia de um autor para o outro. Sob a pluma de Vacant, «de fé católica» significa «de fé divina e católica».
  22. Id., ibid., § 663.
  23. De Ecclesia, n° 896-897.
  24. De valore notarum theologicarum, cap. 2, p. 10-20.
  25. Página 19.
  26. O padre Zapelena ressalta que os decretos dos concílios ecumênicos vão se beneficiar assim de melhores conselhos (Zapelena, ibid., p. 187).
  27. Zapelena, ibid., p. 188.