QUANDO OS INIMIGOS SE TORNAM AMIGOS

Abbé Philippe Toulza • La Porte Latine

Pe. Philippe Toulza, FSSPX

Como explicar o declínio da evangelização na Europa? A rigor, a resposta a essa pergunta é que qualquer decréscimo no Cristianismo tem como sua causa, ao menos na porção adulta que afeta, uma falta de cooperação com a ação de Deus. De fato, a graça nunca falta; se a evangelização não se consuma, então isso se dá porque o homem, a quem ela está destinada, apresentou um obstáculo a ela. A descristianização ocorre quando, em um grupo humano, uma proporção crescente de almas não mais adere à fé ou, embora se mantendo católica, negligencia seu progresso em direção a Deus ou mesmo abandona a fé (ou a vida católica). Durante o iluminismo, o filósofo Julien de la Mettrie (1709-1751) foi um desses casos; ele nasceu em uma família católica na Bretanha, e seu pai achava que ele poderia ser um Padre. Ele preferiu dedicar-se ao estudo da medicina, o que o levou ao materialismo, ao ateísmo e ao libertinismo; ele espalhou essas convicções em seus escritos e entrou para a história como um exemplo lamentável de secularização. Aqueles responsáveis pela descristianização são, portanto, homens como ele e outros que rejeitam, em maior ou menor grau, para si mesmos ou para aqueles sob seus auspícios conforme o caso, as exigências do Reinado de Cristo.

Essa explicação põe a culpa em várias portas de entrada e, portanto, não é muito específica. Por essa razão, muitos preferem explicar essa descristianização não pelas suas verdadeiras causas, que devem ser buscadas nas almas, mas por aquilo que incita as almas a se afastarem de Cristo. Algumas dessas causas começaram a agir em Pentecostes: o demônio e o mundo. Outras causas estão mais intimamente conectadas a circunstâncias específicas, e são essas causas que nos interessam: quais delas levaram à secularização da Europa?

O pensamento moderno

Uma realidade tão complexa quanto a descristianização e realizada em um continente inteiro ao longo de vários séculos, necessariamente, é resultado de diversas causas: a perda das raízes [de um povo] devido à industrialização, a subversão das sociedades intelectuais, o apoio eclesiástico à escravidão, o avanço do hedonismo, etc. E alguns fatores trabalharam no sentido de promover outros fatores. Porém, o consenso geral é que a principal causa da descristianização é a modernidade. A começar com o Renascimento, a Europa pensou que estava redescobrindo a grandeza da natureza humana que o teocentrismo medieval, supostamente, havia escondido. Havia dúvida quanto a se a raça humana realmente tinha o pecado original e se o homem realmente precisava bater no próprio peito. Então, com o ímpeto da reforma protestante, toda autoridade religiosa parecia perigosa à liberdade; seguindo Rousseau e, após, Kant, a Europa divinizou a autonomia do homem. Assim como Descartes, no Século XVII, havia recusado argumentos que apelassem à autoridade na Filosofia, os pensadores modernos questionaram o dogma; eles não tinham mais a fé da mãe de Villon. No fim, levantes políticos como aqueles de 1789 desafiaram as instituições. Pedia-se liberdade de expressão do pensamento. A aliança entre o trono e o altar era denunciada. Padres eram suspeitos de serem gananciosos e o jugo da moralidade foi jogado fora; o ódio de Voltaire se espalhava. A diversidade religiosa, mesmo aquela entre católicos e protestantes, tornou-se um pretexto para rejeitar a autoridade dos Padres; havia tantas religiões na terra… o fato do Catolicismo ser a religião de nossos pais bastava para torná-lo mais crível que as outras?

Os direitos humanos eram opostos à “intolerância” do passado, a razão à fé, a independência à lei. Essas ideias modernas encorajavam as almas e as instituições a se afastarem da religião tradicional. O resultado é que, hoje, como Danièle Hervieu-Léger escreve, “o Catolicismo, que era a matriz social, política e cultural do mundo ocidental, hoje, até mesmo nas áreas onde ele desenvolve seu poder civilizatório, é cada vez mais ostracizado às margens da vida social. É apenas uma questão privada de um número cada vez menor de indivíduos; ele não mais molda profundamente as condutas e as consciências”

A modernidade não é o único problema; a descristianização também tem sido atribuída ao progresso científico e tecnológico. Isso tem fundamento? É verdade que, nos Séculos XVI e XVII, o conhecimento humano da natureza progrediu; muitas descobertas foram feitas na astronomia, na mecânica e na geografia; os homens pararam de atribuir a seres espirituais os fenômenos que, agora, a ciência era capaz de explicar. Atenágoras e São Tomás haviam, por exemplo, atribuído o movimento das estrelas à ação dos anjos, mas, agora, a gravitação universal explicava esse movimento e parecia desacreditar a Teologia. Ao mesmo tempo, a imprensa, instrumentos ópticos e, mais tarde, o motor a vapor aumentaram o domínio humano sobre a natureza. As condições de vida melhoraram, o que colocou em parênteses a esperança na vida eterna. A ciência médica, em breve, seria capaz de proteger os homens da praga; eles realmente precisavam rezar? Primeiro os meios de transporte e, depois, as comunicações tornaram-se mais rápidos e levaram a contatos com outras civilizações, que viam nossa religião de uma perspectiva diferente. Em suma, o progresso científico e tecnológico não apenas estavam em conformidade com o pensamento moderno, eles também o ajudaram a florescer. Apesar disso, eles não eram mais que uma oportunidade favorável à descristianização, e não sua verdadeira causa; pois a ciência, em si mesma, não se opõe à religião. Além disso, ainda que o pensamento moderno tivesse sido impedido de florescer por alguma razão, o progresso científico e tecnológico ainda teria sido realizado, assim como aconteceu na Idade Média cristã. A descristianização da Europa não teve outra causa principal senão o crescimento da modernidade.

Qual foi a atitude da Igreja diante dele? Primeiramente, ela o deplorou. O edifício da Europa cristã estava rachando, suas paredes estavam desabando, ela ameaçava ruir; para o Corpo Místico de Cristo, era um golpe ao panorama da fé sobrenatural. O destino de São Thomas More foi emblemático desse tempo. Chanceler do Rei da Inglaterra, ele rejeitou a nova lei promulgada pela Coroa que separava o país da unidade da Igreja. Por isso, ele foi aprisionado na Torre de Londres até seu julgamento; terminou sendo decapitado, assim como Cosme, Damião e Cecília séculos antes. Em 1535, durante essas provações, ele escreveu um livro no qual contemplava A Tristeza de Cristo no Jardim das Oliveiras. Suas meditações também expressam sua própria tristeza diante da morte. Pode-se ver, nelas, também, a tristeza da Igreja face à descristianização da Europa, uma descristianização na qual o cisma que se formava do outro lado do Canal era um passo que levaria a Inglaterra ao anglicanismo. Mas a Igreja não se limitou a deplorar a perda de influência. Ela reagiu, e a história de sua ação compõe-se de duas grandes fases. Da reforma até o Vaticano II, a Igreja se opôs à modernidade. Após o Concílio, ela escolheu uma nova atitude. Passemos a analisar essas duas fases.

Oposição inicial

Até metade do Século XX, a apreensão da Igreja face à secularização se expressava, acima de tudo, nos documentos do Magistério. Eles revelam que, entre 1517 e 1965, o julgamento da Santa Sé sobre a modernidade era severo. Do Século XIX em diante, a maioria desses documentos eram encíclicas. Elas todas se baseiam numa arquitetura razoavelmente semelhante, da qual a Quanta Cura de Pio IX é um bom exemplo. Nesse texto, escrito em 1864, o Papa descreve o nascimento de uma nova ideia sobre o papel da religião na sociedade; ele deplorava o naturalismo dessa ideia e respondeu a ela com os ensinamentos tradicionais sobre os direitos públicos da Igreja. Pio IX baseava sua encíclica em dois pressupostos:

  1. A secularização vem do erro e do mal. Quanta Curaestigmatizava as “calúnias dos hereges”, os “livros venenosos”, as “doutrinas ímpas”, as “iníquas maquinações dos malvados” e as “monstruosas opiniões”. O que levou Pio IX a ser tão severo foi o fato de que, 16 anos antes, forças revolucionárias o haviam despojado de uma parte dos Estados Papais. Em Novembro de 1848, o chefe de governo da Santa Sé, Pellegrino Rossi, até mesmo foi assassinado por rebeldes quando o Palácio do Quirinal foi cercado pelos seguidores de Giuseppe Mazzini. O Papa teve de fugir à noite. Pio IX sentiu a revolução na própria pele.
  2. A oposição da Igreja à modernidade é justa, e os meios usados nessa oposição sempre foram prudentes. Na visão de Pio IX, seus predecessores “nada cuidaram tanto como descobrir e condenar […] todas as heresias e erros” com “apostólica fortaleza”, e ele desejava seguir “os passos ilustres de Nossos Predecessores”. Nem Pio IX, nem os outros pontífices se arrependeram da oposição da Igreja à modernidade. Eles convidavam os Bispos a rezar, a serem cautelosos na escolha dos candidatos ao sacerdócio, a pregar a verdade ainda mais, a refutar os erros, a recuperar as almas; eles proibiram publicações más e impuseram sanção após sanção. Mais tarde, Leão XIII optaria por um tom menos virulento em seus ensinamentos. Nenhum Papa agiu exatamente da mesma maneira que os outros, mas todos eles eram unânimes nesses dois pressupostos.

Alguns podem alegar que houve tréguas nesse confronto entre a Igreja e a modernidade. Por exemplo, Leão XIII pediu aos católicos franceses que apoiassem a República; Pio XI condenou a Action Française; Pio XII deu discursos de rádio modernos; outras concessões podem ser mencionadas também… Essas observações são verdadeiras; apesar disso, de Leão X a Pio XII, a conduta da Igreja, de modo geral, foi constante.

A grande tormenta

No começo do pontificado de João XXIII, essa descristianização ainda era causa de preocupação. Dom Marcel Lefebvre adentrou o anfiteatro conciliar em 1962 indagando-se sobre como a contra-atacar. Pois o seu tempo como Bispo em Tulle havia aberto os olhos do ex-missionário na África para a realidade da Europa: seminários vazios, clero desanimado, igrejas quase sem fiéis. A perseverança da juventude era causa especial de preocupação para os padres paroquianos. Já em 1938, François Mauriac havia escrito: “A primeira comunhão de uma criança é o sinal oficial e reconhecido de que ela vai abandonar Cristo e a Igreja”

O que tinha de ser feito? Essa questão preocupou os padres do Vaticano II, e um texto sobre as relações da Igreja com o mundo foi preparado. Ele levou à constituição Gaudium et Spes: nela, o Concílio promulgou um ponto de virada na conduta da Igreja. De acordo com certos Padres Conciliares, a oposição entre a Igreja e o mundo não apenas não havia solucionado o distanciamento entre os homens e a religião, mas havia aumentado ainda mais essa realidade. A Igreja havia perdido o apoio do poder secular, e, agora, ela precisava encontrar uma nova forma de se equilibrar; ela havia perdido a confiança das pessoas e precisava tornar-se mais atraente. Em suma, a Igreja precisava adaptar-se à situação. Bento XVI fala sobre essa ação: “O Catolicismo, que havia construído e adornado o mundo ocidental, parecia, cada vez mais, perder sua força. Ele parecia esgotado, e o futuro parecia estar destinado a ser governado por outras forças espirituais. Essa sensação de perda do presente por parte do Catolicismo e a tarefa que decorria dela foi bem expressada pelo termo aggionarmento. O Cristianismo precisava estar no presente, para ser capaz de formar o futuro”. Os Papas do Concílio delinearam, em essência, o caminho a ser seguido. No discurso inaugural de 1962, João XXIII insistiu que o passado não havia sido tão maravilhoso quanto eles haviam pensado, nem os tempos presentes tão ruins quanto eles haviam considerado, paradoxalmente unindo o conhecimento da secularização com um otimismo oculto; ele concluiu com a promessa de que, dali em diante, a Igreja seria mais misericordiosa. No discurso de encerramento de 1965, Paulo VI louvou o que ele acreditava que a Igreja tinha em comum com o humanismo contemporâneo: o culto do homem. Esses discursos, em conjunto com os textos do Concílio, definiram a nova atitude. Os dois pressupostos anteriores foram abandonados e substituídos por dois pressupostos, estes contrários:

  1. Nem tudo na modernidade era falso ou mau. Muitas das aspirações dos homens eram justas. A severidade do julgamento da Igreja sobre o mundo foi substituída por um otimismo benevolente para obter uma reconciliação.
  2. Na oposição histórica da Igreja ao mundo moderno, certas posturas haviam sido contrárias ao Evangelho e demandavam arrependimento.

Baseada nesses dois pressupostos, a nova postura da Igreja viria a afetar os três poderes eclesiásticos:

  1. O Magistério: ele deveria denunciar menos os erros e enfatizar mais os elementos convergentes do Catolicismo com as culturas nas quais ele era forçado a viver; o primeiro desses elementos era a convicção de que o homem é bom. O diálogo entre religiões tornou-se uma palavra de ordem do Magistério. Abertura ao mundo.
  2. Os sacramentos: decidiu-se que os ritos seriam reformados para os tornar mais aceitáveis aos nossos tempos, menos austeros e mais populares. A fronteira clara entre o profano e o sagrado foi questionada.
  3. As leis da Igreja: elas se tornaram menos numerosas, menos repressivas à natureza humana, e as autoridades se mostrariam, dali em diante, mais flexíveis no controle da fidelidade a essas leis.

Nem tudo foi definido no Concílio, mas tudo foi expressado ou experimentado em decorrência dele. Parte das atividades paroquiais estaria, dali em diante, direcionada à criação de um ´mundo mais justo´. Juntamente com outras religiões e os governos, a Igreja tinha a intenção de combater a desigualdade econômica, trabalhar pela paz e promover os direitos humanos. A Teologia do Papa Wojtyla deu a esses objetivos uma densidade intelectual. Enquanto regimes totalitários causavam grandes desgraças a várias nações, João Paulo II explicava que a pessoa humana era o alfa e o ômega do governo. Seu personalismo foi visto como uma maneira de escapar do coletivismo.

O fim de Cristo Rei

Como sinal dessa amizade com a modernidade, o conceito de Cristandade foi abandonado. Essa decisão não foi uma mera coincidência. De fato, a aliança entre o altar e o trono havia sido uma força inestimável na oposição às ideias modernas, mas essas ideias não eram mais demonizadas. E o Catolicismo, enquanto religião do Estado, não era mais conducente à liberdade e soberania do povo.

Cristo, portanto, foi destronado. Até o começo do Século XX, a missão recebida d´Ele aplicava-se ao homem nas três dimensões que Deus lhe havia dado na criação: como indivíduo, como membro de uma família e como um cidadão. Os Padres liberais haviam negado a terceira dimensão. Eles proclamaram a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae); o Vaticano II não foi além disso, ele não chegou a apoiar a neutralidade religiosa do Estado. Mas o Papa e os Bispos encerraram o trabalho depois dele. Eles assentiram à descristianização dos governos que já havia sido imposta à Igreja aqui e ali. Ela errou — alegaram eles — ao se envolver na política. Teodósio foi julgado e condenado, digamos assim. O historiador Jean Delumeau chegou a dizer que a Cristandade havia sido maléfica à fé, pois a religião de nossos ancestrais era frágil, e sua fidelidade aos mandamentos, rara! A Cristandade havia fracassado; na verdade, ela era responsável por esse fracasso: “A presente descristianização é, em grande parte, o preço a se pagar por aquela enorme aberração que durou um milênio e meio”

Delumeau estava, apenas, seguindo o rumo indicado pelas autoridades da Igreja. Esse novo rumo era como um tapa na cara dado por Paulo VI em Pio IX e seus predecessores. Pois, até 1965, se a religião causava alguma oposição, era uma oposição entre a Igreja e o mundo. Mas, com 1965, uma nova oposição nasceu, uma oposição entre aqueles que aderem ao passado da Igreja – e Dom Lefebvre estava entre eles – e aqueles que não mais o fazem.

(The Angelus, Set-Out 2020. Tradução: Permanência)