RESTAURAÇÃO DO MATRIMÔNIO CRISTÃO – PARTE 3

mat3Salário Familiar

Em primeiro lugar deverá, com todo o esforço, realizar-se o que foi já sapientemente decretado pelo Nosso predecessor Leão XIII (Enc. Rerum Novarum, 15 de maio de 1891), isto é, que na sociedade civil as condições econômicas e sociais estejam ordenadas de tal forma, que qualquer pai de família possa merecer e ganhar o necessário ao sustento próprio, da mulher e dos filhos, e conforme às diversas condições sociais e locais, “pois que ao operário é devida a sua recompensa” (Lc 10, 7) e negar-lha ou não lha dar na justa medida é grave injustiça, que pela Sagrada Escritura se enumera entre os maiores pecados (cf. Deut 24, 14-15), assim como não é lícito ajustar salários a tal ponto diminutos que sejam insuficientes, segundo as circunstâncias, para alimentar a família.

Será bom, todavia, que os próprios cônjuges, muito antes de contraírem matrimônio, removam os obstáculos materiais, ou procurem, pelo menos, diminuí-los, deixando-se instruir por pessoas entendidas acerca do modo de o conseguir eficaz e honestamente. E, se por si o não puderem alcançar, proveja-se com a união dos esforços das pessoas de idênticas condições e mediante associações privadas e públicas às formas de ocorrer às necessidades da vida (Cf. Leão XIII, Enc. Rerum Novarum, 15 de maio de 1891).

O dever dos ricos

Quando, porém, os meios até aqui indicados não cheguem para fazer face às despesas, especialmente se a família é numerosa ou pobre, o amor cristão do próximo exige absolutamente que a caridade cristã supra aquilo que falta aos indigentes, que os ricos auxiliem os mais pobres, e que os que têm bens supérfluos, em vez de os empregarem em vãs despesas, ou, para melhor dizer, em vez de os dissiparem, os empreguem na sustentação da vida e da saúde daqueles a quem falta o necessário. Os que dos próprios bens derem a Cristo nos seus pobres receberão abundantíssima recompensa do Senhor quando vier a julgar o mundo. Os que assim não procederem serão castigados (Mt 24, 34, segs.), visto que não é em vão que o Apóstolo adverte: “Como poderá amar a Deus aquele que tendo bens deste mundo, e vendo o seu irmão em necessidade, ficar insensível perante ele?” (1 Jo 3, 17).

O que compete aos poderes públicos. Assistência pública

Quando os subsídios privados não bastarem, competirá à autoridade pública suprir a insuficiência dos indivíduos, principalmente em assunto de tanta importância para o bem comum, qual seja, o de que as condições da família e dos cônjuges sejam dignas do homem. De fato, se às famílias, e especialmente às que têm numerosa prole, faltam convenientes habitações, se o homem não consegue encontrar oportunidade de arranjar trabalho e alimento, se as coisas necessárias para os usos cotidianos não puderem comprar-se senão a preços exagerados, se, finalmente, as mães de família, com grande prejuízo da economia doméstica, estão sobrecarregadas pela necessidade e pelo gravame de ganhar dinheiro à custa do próprio trabalho, se nos trabalhos ordinários e até nos trabalhos extraordinários da maternidade lhes faltar o alimento conveniente, os remédios, o auxílio de um médico competente e outras coisas semelhantes — não há ninguém que não veja quão difícil se lhes torna a vida doméstica e a observância dos preceitos divinos, e também quão grande perigo daí possa vir para a segurança pública, para a salvação e a vida da própria sociedade civil, se tais homens, nada tendo já que receiem que se lhes possa tirar, forem induzidos a tão grande desespero, que ousem esperar poder conseguir talvez muito da subversão do Estado e de tudo o mais.

Portanto, os que têm a seu cargo os negócios públicos e o interesse comum não podem, sem grande dano da sociedade e do mesmo interesse público, desprezar estas necessidades materiais dos cônjuges e das famílias, e por isso é necessário que, ao fazerem as leis e ao regularem as despesas públicas, tenham na major conta o cuidado de acorrer em auxílio da penúria das famílias pobres, na certeza de que este é um dos principais deveres do seu cargo.

Neste assunto não é sem mágoa que notamos não ser hoje raro o caso em que, contrariamente ao que deve ser, se provê facilmente com pronto e abundante subsídio à mulher e à prole ilegítima (embora a esta também se deva socorrer, até para impedir males maiores), ao mesmo tempo que à legítima ou é negado o socorro, ou é concedido com mesquinhez e quase de mau grado.

 

Garantias morais

À autoridade pública interessa muitíssimo, Veneráveis Irmãos, que o matrimônio e a família sejam bem constituídos, não só pelo que se refere aos bens temporais mas também aos bens próprios das almas, isto é, promulgar leis justas a respeito da fidelidade, da castidade e do mútuo auxílio entre os cônjuges, mantendo-as escrupulosamente porque, como ensina a História, a salvação do Estado e a prosperidade da vida temporal dos cidadãos não permanece forte e segura quando vacile o fundamento em que se apóia, o qual é a boa ordenação dos costumes, e quando pelos vícios dos cidadãos se obstrua a fonte donde brota a sociedade, isto é, o matrimônio e a família.

Em auxílio da Igreja

Mas para conservar a ordem não bastam as forças externas da comunidade e as suas penas, e nem sequer o apresentar-se aos homens a própria beleza e necessidade da virtude, mas é necessário que se lhes junte a autoridade religiosa, que ilumine a inteligência com a verdade, dirija a vontade e fortifique a fragilidade humana com os auxílios da divina graça, e essa autoridade é unicamente a Igreja instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo. Razão por que exortamos vivamente no Senhor todos os que têm o supremo poder civil a entrar em relações de amizade concorde, e a reforçá-las cada vez mais, com esta Igreja de Cristo, para que, mediante a unânime e solícita ação do duplo poder, se afastem os danos enormes que, por causa das atrevidas e descaradas liberdades contra o matrimônio e contra a família, ameaçam não somente a Igreja mas a própria sociedade civil.

As leis civis

As leis civis podem, de fato, beneficiar muito esta gravíssima missão da Igreja, se em suas normas tiverem em conta o que prescreve a lei divina e eclesiástica e estabelecerem penas contra os transgressores. Há, em verdade, muitas pessoas que julgam ser-lhes lícito, ainda segundo a lei moral, o que é permitido pelas leis do Estado ou, pelo menos, por elas não é punido; há-as também que praticam ações, ainda contra a voz da consciência, por não temerem a Deus nem verem motivo para temer as leis humanas, pelo que freqüentemente são causa da ruína própria e de muitos outros.

Nem é de recear algum perigo ou diminuição nos direitos e na integridade da sociedade civil por virtude deste acordo com a Igreja, porque são insubsistentes e completamente vãs tais suspeitas e receios, como teve já ocasião de o demonstrar eloqüentemente Leão XIII: “Não há dúvida”, diz, “que Jesus Cristo, fundador da Igreja, quis o poder religioso distinto do civil e que um e outro tivessem no seu campo próprio completa e perfeita liberdade de ação, com a condição todavia de existir entre eles a união e a concórdia em mútua vantagem e da mais alta importância para todos os homens […]. Se o poder civil estiver plenamente de acordo com o poder sagrado da Igreja, não pode deixar de daí derivar grande utilidade para ambos. De fato aumenta a dignidade do primeiro, e, sob a guia da religião, o seu governo nunca será injusto; ao do segundo oferecem-se auxílios de tutela e de defesa no interesse comum dos fiéis” (Enc. Arcanum, 10 de fevereiro de 1880).

Exemplo luminoso

E, para citar o exemplo luminoso de um fato recente que se deu de acordo com a ordem devida e a lei de Cristo, lembraremos que nas solenes convenções felizmente estipuladas entre a Santa Sé e o reino da Itália, ainda no que respeita ao matrimônio, se efetuou um acordo pacífico e uma cooperação amigável, como o exigiam a gloriosa história e as antigas tradições religiosas do povo italiano. E assim, de fato, se lê decretado nos Pactos Lateranenses o seguinte: “O Estado italiano, querendo restituir à instituição matrimonial, que é a base da família, a dignidade conforme às tradições do seu povo, reconhece efeitos civis ao Sacramento do matrimônio, regulado pelo direito canônico” (Concord., Art. 34: Acta Apost. Sed. XXI 1929, pág. 290), norma fundamental esta à qual posteriormente e de mútuo acordo se acrescentaram outras determinações.

Sirva isto de exemplo e argumento, nos mesmos tempos atuais (em que infelizmente com freqüência se vem pregando uma absoluta separação entre a autoridade civil e a da Igreja, ou antes, de qualquer religião), para demonstrar que os dois supremos poderes, sem detrimento algum recíproco dos próprios direitos e garantias soberanas, podem juntar-se e associar-se concordemente em pactos amigáveis, no interesse comum de uma e de outra sociedade, e que pode existir da parte dos dois poderes, a respeito do matrimônio, um cuidado comum, em virtude do qual sejam afastados das uniões conjugais cristãs perigos perniciosos, ou até a ruína já iminente.

CONCLUSÃO

Tudo isto, Veneráveis Irmãos, que convosco ponderamos atentamente, movidos pela solicitude pastoral, quereríamos que fosse largamente divulgado, segundo as normas da prudência cristã, entre todos os nossos diletos filhos diretamente confiados aos vossos cuidados, entre todos os membros da família cristã, a fim de que todos conheçam plenamente a sã doutrina acerca do matrimônio, se acautelem diligentemente dos perigos semeados pelos divulgadores de erros e, sobretudo, “renegada a impiedade e os desejos do mundo, vivam nesse mundo com temperança, com justiça e com piedade, ansiando pela bem-aventurada esperança e pela vinda da glória do grande Deus e Salvador nosso, Jesus Cristo” (Tito 2, 12-13).

Conceda-Nos o Pai Onipotente, “de quem toda a paternidade, tanto no céu como na terra, recebe o nome” (Ef 3, 15), que ajuda os débeis e anima os pusilânimes e os tímidos; conceda-Nos Cristo Senhor e Redentor, “instituidor e aperfeiçoador dos veneráveis Sacramentos” (Conc. Trident., sess. XXIV), que quer e fez o matrimônio à mística imagem da sua inefável união com a Igreja; conceda-Nos o Espírito Santo, Deus Caridade, fogo dos corações e vigor das inteligências, que o que expusemos na Nossa presente carta acerca do santo sacramento do matrimônio, da admirável lei e vontade divina que lhe diz respeito, dos erros e perigos que sobrevêm, e das medidas com que se podem evitar, seja perfeitamente compreendido, prontamente aceito e posto em prática com o auxílio da graça divina, de forma que floresça e prospere nos matrimônios cristãos a fecundidade oferecida a Deus, a fidelidade sem mancha, a inconcussa estabilidade, a santidade do sacramento e a plenitude das graças.

E para que Deus, que é o autor de todas as graças e a quem pertence todo o querer e realizar (Filip 2, 13), realize e se digne liberalizar tudo isto segundo a sua benignidade e onipotência, enquanto Nós, com toda a humildade, elevamos calorosas preces ao trono da sua graça, como penhor de copiosa bênção do mesmo Deus Onipotente, a Vós, Veneráveis Irmãos, ao clero e ao povo entregues aos vossos cuidados vigilantes e assíduos, concedemos de todo o coração a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 31 de dezembro de 1930, nono ano do Nosso Pontificado.

Pio PP. XI.