SERMÃO DE SÃO LEÃO MAGNO SOBRE A PAIXÃO DO SENHOR (SERMÃO LVII)

São Leão Magno – Núcleo de Estudos de Filosofia, Patrística e Patrologia
INTRODUÇÃO DA REVISTA “A ORDEM”

O sermão que hoje publicamos como precioso alimento para estes dias sacratíssimos da Quaresma em que, na alegria do Espírito Santo esperamos a Páscoa do Senhor, é um dos dezenove sermões do santo Papa que estão colecionados nas edições impressas como “Sermões sobre a Paixão”.[1] Pelas suas primeiras palavras, vê-se que é precedido de um outro. Esta circunstância não prejudica porém a sua unidade, pois forma por si só um todo independente; foi pronunciado numa quarta-feira da Semana Santa e o sermão anterior a que alude, no domingo precedente.

Mesmo entre os sermões de S. Leão este se faz notar pela sua extraordinária beleza, pela segurança magistral do movimento oratório; contém por assim dizer todos os pontos de história e doutrina que o santo Pastor costumava abordar nas homilias similares e não se estende por mais de quinze minutos. 

De início, é quase um “sermão de lágrimas”: é a Paciência de Cristo, a crueldade e cegueira dos Judeus, a cumplicidade de Pilatos, a iniqüidade do processo que condenou Jesus e tudo isso culminando com a crucificação e morte de Cristo (I-V). Mas neste momento, a narração cede o passo à exortação: o pensamento se eleva gradativa e rapidamente e o tema da gloria da Paixão se desenvolve em toda a sua plenitude (VI-VII). A conclusão é uma exortação à vida cristã: a Paixão do Senhor destruiu a morte e a nossa vida, a nossa moral é o exercício do mistério da “nova criatura”: “como as coisas antigas passaram e tudo se fez novo, ninguém permaneça na caducidade da vida carnal…” (VIII).

A glória da Paixão… a glória da Morte do Senhor… “uma força da fraqueza, uma glória do opróbio…”. Invariavelmente o santo Padre desenvolve este tema. “A glória da Paixão do Senhor, sobre a qual vos prometemos falar ainda hoje, Diletíssimos, é principalmente admirável pelo mistério de humildade que contém”: são as primeiras palavras de um outro sermão seu. Invariavelmente ele nos exorta à alegria e nos proíbe de chorar[2] ao considerarmos o espetáculo patético do Calvário; tal como hoje a Liturgia da Sexta-Feira Santa nos fala do “gáudio que veio para todo o mundo” através da Cruz do Senhor.  

Piedoso exagero oratório? Gosto condenável do paradoxo? É quase um escândalo (o escândalo da Cruz!) que possamos indagar, ainda que em interrogação retórica, a respeito daquilo que o instinto cristão mais elementar já exprimia ao adornar a Cruz de pedrarias e assim representar aos olhos da carne o que a fé via tão nitidamente: a glória da Paixão do Senhor. E no entanto indaguemo-lo agora: será a Paixão gloriosa, será gloriosa a Morte do Senhor, será a Sexta-Feira Santa um dia de triunfo e de glória, estará certo o Cânon da nossa Liturgia ocidental ao dizer que comemoramos “a tão bem-aventurada Paixão” de Cristo?  Continuar lendo