ISTO É O MEU CORPO

O novo Missal de Paulo VI é imperfeito a ponto de tornar-se equívoco na expressão da Lei da fé e incorrer no risco de invalidade quanto à eficácia do sacramento.

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

1. Em sua 22ª sessão, realizada em 17 de setembro de 1562, o Concílio de Trento afirmou que “neste sacrifício divino que se realiza na Missa, Cristo está contido e imolado de forma incruenta, Ele que se ofereceu de uma vez por todas de forma cruenta no altar da cruz (Hb 9, 14; 27)[1]. E para insistir no valor propiciatório deste sacrifício, o Concílio especifica ainda que “é, com efeito, uma única e a mesma vítima, a mesma que, oferecendo-se agora pelo ministério dos sacerdotes, ofereceu-se então na Cruz, sendo apenas diferente a forma de oferecer a si mesmo. Os frutos desta oblação – que é cruenta – são recebidos abundantemente através desta oblação incruenta; de tal modo que a última não diminui de modo algum a primeira”[2]. A Missa, portanto, não é outro sacrifício senão o sacrifício do Calvário. Ela é esse mesmo sacrifício, realizado de outra forma, já não mais físico, mas sacramental. Isso significa que ela é seu sinal eficaz: a Missa realmente realiza o próprio sacrifício do Calvário na exata medida em que o significa, através de um conjunto de palavras e gestos que constituem precisamente o rito. O missal é a expressão literal (ou a escrita) deste rito. O Missal tradicional dito “de São Pio V” é a expressão mais exata que a Igreja pôde dar aos seus fiéis até hoje, com todo o significado necessário para esta realização sacramental do sacrifício incruento.

2. O novo Missal de Paulo VI, por sua vez, “representa, tanto em seu todo como nos detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa tal qual formulada na sessão 22 do Concílio de Trento”. Tal é o veredicto do  Breve Exame Crítico, apresentado ao Papa Paulo VI pelos Cardeais Ottaviani e Bacci. Para ilustrar seu fundamento, demos como exemplo a impressionante redução dos sinais da cruz neste Novus Ordo Missaede Paulo VI. A Institutio Generalis, em sua última versão revisada de 2002, prevê apenas dois fora do Cânon: um primeiro no início da Missa (n.º 124) como rito de entrada quando o celebrante se assinala ao mesmo tempo que os fiéis, e um segundo no final (n.º 167) como rito de conclusão, quando o celebrante dá a bênção aos fiéis. No Cânon (isto é, naquilo que o Missal de Paulo VI doravante designa por “Oração Eucarística”) resta apenas um, logo no início, quando o sacerdote faz o sinal da cruz tanto no pão como no cálice (“Ut benedicas +  haec dona” na Oração Eucarística I; “ut nobis Corpus et  +  Sanguis fiant Domini nostri Jesu Christi” na Oração Eucarística II; “ut Corpus et  +  Sanguis fiant Filii tui Domini nostri Jesu Christi” na Oração Eucarística III; “ut Corpus et  +  Sanguis fiant Domini nostri Jesu Christi” na Oração Eucarística IV).

3. Só no Cânon do Missal dito “de São Pio V”, havia 26 sinais da cruz. A razão destes sinais da cruz é única e representativa: “O sacerdote”, explica São Tomás, “durante a celebração da Missa, faz os sinais da cruz para evocar a Paixão de Cristo, que o levou à Cruz”[3]. Segundo a explicação dada pelo Doutor Comum da Igreja, os vários sinais da cruz feitos pelo celebrante durante a Missa correspondem a uma progressão lógica de significado, para representar as nove etapas da Paixão, ou seja, deixando evidente que a Missa é idêntica ao sacrifício do Calvário.

– Primeiramente, Cristo foi entregue: por Deus, por Judas e pelos judeus. Isso é simbolizado pelo triplo sinal da cruz nestas palavras: “Haec dona haec munera + haec sancta sacrificia illibata +”. 

– Em segundo lugar, Cristo foi vendido: aos sacerdotes, aos escribas e aos fariseus. Para simbolizá-lo, o sacerdote novamente faz um triplo sinal da cruz sobre estas palavras: “benedictam + adscriptam ratam +”; ou então para mostrar o preço do acordo, que era de 30 denários. E o sacerdote acrescenta um duplo sinal da cruz sobre estas palavras: “ut nobis Corpus + et Sanguis fiat”, para designar a pessoa de Judas que vendeu, e a de Cristo que foi vendido. 

– Em terceiro lugar, a prefiguração da Paixão de Cristo foi realizada na Última Ceia. Para designá-la, o sacerdote faz pela terceira vez duas cruzes, uma na consagração do Corpo, outra na consagração do Sangue, onde diz cada vez “benedixit”. 

– Em quarto lugar, a própria Paixão de Cristo inclui as cinco chagas e para representá-las, o sacerdote faz um quinto sinal da cruz sobre estas palavras: “hostiam puram hostiam sanctam hostiam immaculatam + panem sanctum vitae aeternae et calicem salutis perpetuae +”. 

– Em quinto lugar, o sacerdote representa o dilaceramento do corpo, o derramamento do sangue e o fruto da Paixão pelo triplo sinal da cruz que é feito nestas palavras:  “ut quotquot ex hac altaris participatione sanscrosanctum Filii tui Corpus et Sanguinem sumpserimus omni benedictione caelesti et gratia repleamur“. 

– Em sexto lugar, o sacerdote representa a tripla oração que Cristo fez na cruz: a primeira pelos seus perseguidores, quando disse: “Pai, perdoa-lhes“, a segunda pela libertação da morte, quando disse: “Meu Deus, meu Deus , por que me abandonaste?”; a terceira diz respeito à sua entrada na glória, quando disse: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. E para simbolizar isso, o sacerdote faz um triplo sinal da cruz sobre estas palavras: “santificas vivificas benedicis et praestas nobis”. 

– Em sétimo lugar, o sacerdote representa as três horas que Jesus esteve pendurado na cruz, desde a sexta até a nona hora. E para simbolizá-la ele novamente faz um triplo sinal da cruz com estas palavras: “per Ipsum + et cum Ipso + et in Ipso+”. 

– Em oitavo lugar, o sacerdote representa a separação da alma e do corpo pelos dois sinais da cruz que faz então fora do cálice, dizendo “est tibi Deo Patri omnipotenti in unitate Spiritus Sancti”. 

– Em nono lugar, o sacerdote representa a Ressurreição realizada no terceiro dia, pelas três cruzes que ele faz com estas palavras: “Pax Domini sit sempre vobiscum +”.

4. Essas explicações não são reveladas divinamente e não são obrigatórias para a adesão de nossa fé. São objeto de uma tradição herdada dos Padres da Igreja e dos teólogos. Mas para além deste ou daquele pormenor da explicação, a ideia fundamental impõe-se à nossa adesão, porque é a ideia definida pelo Concílio de Trento: a Missa é a realização sacramental do sacrifício da Cruz. É seu sinal eficaz e o reproduz na medida exata em que o significa. Deste ponto de vista, os gestos do rito, no qual fazem parte os sinais da cruz feitos pelo sacerdote, representam um elemento essencial e necessário. Com a reforma de Paulo VI, o rito da Missa reduziu, só no Cânon, de 26 sinais da cruz para apenas 1. Tal diminuição – impressionante – representa uma grave alteração do sinal. Essa reductio ad unum não é insignificante. 

Por isso, efetivamente o novo rito de Paulo VI já não significa mais, senão de maneira muito reduzida, esta verdade essencial: que a oferta que se faz na Missa é a de uma vítima imolada na Cruz. Já não significa tão claramente, como até agora, que o sacrifício da Missa é a realização incruenta do próprio sacrifício da Paixão. Este exemplo permite-nos compreender melhor todo o alcance do juízo formulado pelo Breve Exame Crítico: a nova Missa de Paulo VI “afasta-se” da definição católica da Missa. Este afastamento tem toda sua importância – e representa uma gravidade considerável – se considerarmos que o Santo Sacrifício da Missa só difere do Sacrifício da Cruz pelo modo de ser: físico para o Calvário, sacramental para a Missa.

5. Esta natureza essencialmente sacramental do sacrifício da Missa significa duas coisas. Significa, antes de tudo, que o sacrifício da Missa é como uma imagem que representa o sacrifício passado da Cruz e, deste ponto de vista, a Missa não é a única representação possível, porque os ritos figurativos da Antiga Aliança também eram representações do futuro sacrifício da Cruz. Mas significa, sobretudo, que o sacrifício da Missa provoca realmente os mesmos efeitos que o sacrifício da Cruz e, deste ponto de vista, a Missa é o único meio estabelecido por Deus para comunicar aos homens os frutos do sacrifício redentor de Cristo. O sacrifício sacramental da Missa, como qualquer sacramento, é, assim, o sinal eficaz dos frutos do Sacrifício da Cruz. Contudo, o mistério desta eficácia sacramental (que é a eficácia de um sinal) vai, no entanto, para além da mera comunicação dos frutos do sacrifício da Cruz, uma vez que o sinal da dupla consagração realiza o que significa através da dupla presença real de o Corpo e Sangue de Cristo, sacramentalmente separados. A Missa, por conseguinte, não é apenas um sacramento no sentido de que nos aplica e produz efetivamente os frutos do Sacrifício da Cruz, como todos os outros sacramentos. É também no sentido de que produz efetivamente a própria realidade do Sacrifício da Cruz, sob um modo distinto: é a renovação incruenta da imolação cruenta. Desta forma, e entre outros detalhes significativos, o altar é a representação da Cruz, assim como o sacrifício incruento é a representação do sacrifício cruento. Da mesma forma, o ministro que celebra a Missa é a representação de Cristo realizando o sacrifício na cruz.

6. Tudo isso não pode deixar de suscitar uma considerável questão: as palavras da consagração, que constituem a forma do sacramento da Eucaristia, são uma expressão suficientemente significativa no novo Missal de Paulo VI? A antiga fórmula de consagração é, de fato, uma fórmula devidamente sacramental, de tipo imperativo e não de tipo narrativo. O modo narrativo é aquele em que o sinal apenas produz um conhecimento. Por exemplo, a leitura dos trechos dos Evangelhos que nos relatam a instituição da Eucaristia, na noite da Quinta-feira Santa, corresponde a este modo narrativo: eis a história da instituição da Eucaristia. O modo imperativo é aquele em que o sinal realiza efetivamente o que dá a conhecer. Por exemplo, o rito sacramental da Missa é particular e único na medida em que realiza, de forma instrumental física, o próprio Sacrifício de Cristo na Cruz, do qual é a renovação incruenta: o rito da Missa torna presente sacramentalmente o único Sacrifício da Cruz que exprime por sinais, na mesma medida em que o significa. É precisamente por isso que este modo imperativo (e não narrativo) não assume exatamente o conteúdo literal da narrativa do Evangelho; as palavras de consagração pronunciadas pelo sacerdote durante a celebração da Missa não correspondem exatamente às palavras pronunciadas por Cristo na noite de Quinta-feira Santa. Isso foi deliberadamente desejado pela Igreja para deixar claro que essas palavras de consagração são algo completamente diferente da simples narração dos Evangelhos: elas procedem de acordo com o modo imperativo e não segundo o modo narrativo. Devem dizer o que é necessário para realizar o Sacrifício da Cruz na Sexta-feira Santa e não para narrar a Última Ceia na Quinta-feira Santa. Temos aqui toda a diferença entre a Missa propriamente dita (modo imperativo) e, por exemplo, a leitura da Epístola da Missa de Corpus Christi (modo narrativo).

7. O Breve Exame Crítico indica três provas da natureza propriamente sacramental e intimativa das palavras de consagração do Missal tradicional. Em primeiro lugar, o texto da narrativa bíblica não é tomado literalmente. A inserção paulina: “mysterium fidei” é uma confissão de fé imediata do sacerdote no mistério realizado por Cristo na Igreja através de seu sacerdócio hierárquico. Em segundo lugar, a pontuação e a tipografia. No Missal Romano, dito “de São Pio V”, o texto litúrgico das palavras sacramentais da Consagração é pontuado e destacado de modo próprio. O HOC EST ENIM está, com efeito, separado por um ponto no parágrafo da fórmula que o precede: “…manducate ex hoc omnes”. Este ponto no parágrafo marca a passagem do modo narrativo para o modo imperativo, que é próprio da ação sacramental. As palavras da Consagração no Missal Romano são impressas em letras maiores, no centro da página, muitas vezes em cores diferentes. Tudo isso demonstra que as palavras de consagração têm um valor próprio e, portanto, autônomo. Em terceiro lugar, a anamnese[4] do Cânon Romano refere-se a Cristo como operante, e não apenas à memória de Cristo ou da Última Ceia como um evento histórico. HÆC QUOTIESCUMQUE FECERITIS, IN MEI MEMORIAM FACIETIS significa em grego: “voltado à minha memória”. Esta expressão não nos convida simplesmente a recordar Cristo ou a Última Ceia: é um convite a repetir o que Ele fez, da mesma forma que o fez. E é por isso que haverá, consequentemente, e na dependência da realização incruenta do sacrifício do Calvário, a recordação e o memorial da realização cruenta desse mesmo sacrifício. A realização incruenta do sacrifício faz lembrar não tanto o sacrifício quanto sua realização cruenta. Mas o próprio sacrifício do Calvário não deixa de ser verdadeiramente realizado, sob esta forma incruenta. A esta fórmula tradicional do Missal Romano, o novo rito substitui uma fórmula de São Paulo: “Hoc facite in meam celebrationem” que será proclamada diariamente no vernáculo. Terá o efeito inevitável, sobretudo nessas condições, de mudar o foco nas mentes dos ouvintes sobre a memória de Cristo. A “memória” de Cristo encontrar-se-á designada como termo, como objeto próprio e específico da ação eucarística, ao passo que é sua consequência. “Fazer em memória de Cristo” não será mais nada além de um objetivo humanamente perseguido. Em vez de uma ação real, de ordem sacramental, tomará seu lugar a ideia de “comemoração”.

8. No novo  Ordo Missae o modo narrativo (e já não mais sacramental) é explicitamente citado na descrição orgânica da “oração eucarística”, no número 78 da Institutio generalis (na versão revisada de 2002), pela fórmula: “narração da instituição”; e ainda, no mesmo lugar, pela definição de anamnese: “A Igreja faz memória (memoriam agit) deste mesmo Cristo”. A consequência de tudo isso é insinuar uma mudança no significado específico da Consagração. De acordo com o Novus Ordo Missae, as palavras da Consagração serão doravante enunciadas pelo sacerdote como narrativa histórica, e não mais como afirmação de um juízo categórico e imperativo proferido por Aquele em cuja Pessoa o sacerdote age:  HOC EST CORPUS MEUM e não Hoc est Corpus Christi. Por fim, a aclamação dada à congregação imediatamente após a Consagração: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte…vinde senhor Jesus”, introduz, sob um disfarce escatológico, uma ambiguidade suplementar sobre a Presença real. Proclamamos, com efeito, sem interrupção de continuidade, a expectativa da vinda de Cristo no fim dos tempos, precisamente no momento em que Ele veio ao altar onde está substancialmente presente: como se a verdadeira vinda fosse apenas no fim dos tempos, e não no altar. Esta ambiguidade é ainda reforçada na fórmula opcional de aclamação proposta no apêndice: “Toda vez que se come deste pão e bebe-se este cálice, se recorda a paixão de Jesus Cristo e se fica esperando sua volta”. A ambiguidade aqui atinge o paroxismo, por um lado entre a imolação e a manducação, e por outro, entre a Presença Real e a Segunda vinda de Cristo.

9. Poder-se-ia contrapor a isto o que diz Santo Tomás:[5] “Não há objeção de que o sacerdote pronuncie as palavras de consagração por meio de narrativa, como disse Cristo. Pois, por causa da infinita virtude de Cristo […] porque essas palavras foram pronunciadas por Cristo, obtiveram uma virtude consagratória, independentemente do sacerdote que as pronuncia, como se Cristo as estivesse proferida atualmente”. Mas, precisamente, esta observação consiste em dizer que as palavras da consagração são apenas materialmente recitativas: são constituídas de elementos resultantes de uma narrativa evangélica, mas formalmente, pela virtude instrumental que lhes é comunicada, têm um valor imperativo. Podemos acrescentar que o problema também é outro: tomadas no contexto de todo o rito e como elementos formais dele, as palavras da consagração do novo Ordo Missae inclinam-se (“favent”) para a heresia. É aqui que convém situar as coisas de acordo com o valor significativo do rito da Missa, como mencionado acima.

10. O Breve Exame Crítico afirma, a este respeito, que o modus significandi das palavras da consagração da Missa Nova torna duvidoso o seu valor propriamente sacramental. Essa noção de modus significandi é muito importante e Santo Tomás a enfatiza quando faz a distinção entre a res significata e o que ele chama de modus significandi correspondente. Ele diz, por exemplo, que “para se expressar com verdade, não basta considerar as realidades significadas pelos termos, é preciso também levar em conta a forma como elas são significadas pelos termos”[6]. Neste caso, o modus significandi é o de um rito. Ora, a este nível do modo de significar, próprio de um rito, a ambiguidade do Novus Ordo é tal, que dois significados são igualmente possíveis: o do valor sacramental da Missa católica e o do valor comemorativo da ceia protestante. O Breve Exame Crítico mostra, com efeito, por uma descrição tão completa quanto possível, que assim consideradas essas palavras (tomadas como no novo rito) significam de maneira duvidosa o fim de uma verdadeira Missa. E conclui nestes termos: “A importância das palavras de consagração como aparecem no Novus Ordo é condicionada por todo o contexto. Essas palavras podem garantir validade em virtude da intenção do Ministro, mas não o fazem ex vi verborum, ou mais exatamente, em virtude do modus significandi que lhes está associado no Cânon de São Pio V. Portanto, é possível que essas palavras não garantam a validade da consagração”[7]. Sem dúvida, o novo rito de Paulo VI inclui materialmente as palavras de consagração, como um elemento entre outros. Mas essas palavras adquirem sentido se, e somente se, forem consideradas formalmente, por um lado, não como um elemento isolado, mas como parte integrante do novo rito, ou seja, como significam em convergência com todos os outros elementos desse rito e, por outro lado, de acordo com seu próprio modo, que não é mais um modo imperativo, mas narrativo. E destes dois pontos de vista, estas palavras não significam de forma suficientemente clara e eficaz o que significam na dita Missa “de São Pio V”, ou seja, o resultado visado pelo sacramento, que é a realização incruenta do sacrifício cruento do Calvário. O Novus Ordo, sem negar esse resultado e esse fim, já não o significa de forma explícita e eficaz. Por exemplo, o novo rito de Paulo VI reduz a ação sacrificial às palavras de consagração, enquanto todos os ritos católicos (orientais ou ocidentais) sempre evocam essa ação não apenas nas palavras de consagração, mas também antes (no ofertório) e depois (na epiclese)[8]. Isso porque a liturgia ignora o tempo: o rito da Missa não é uma sucessão cronológica; é um conjunto de sinais que indicam repetidamente, de forma unida, a mesma ideia de um sacrifício propiciatório. O ofertório da nova missa representa o caso absolutamente único de uma oração tirada de uma bênção judaica: pode-se então perguntar se o novo rito de Paulo VI não obedece à lógica de uma narrativa histórica, apresentada segundo uma sequência cronológica: narrativa histórica ou memorial da Última Ceia.

11. Portanto, as palavras de consagração podem atuar no Novus ordo como a forma válida do sacramento, mas o fazem apenas na medida em que o ministro possua, previamente, não apenas a intenção de realizar o rito da nova missa, mas também a intenção (adicional) de obter o resultado pretendido pelo rito da Missa antiga. Se o ministro pretende, assim, fazer explícita e especificamente o que este novo rito não manifesta suficientemente, então o sacramento será válido. Mas se o ministro está desprovido desta intenção, e se confia unicamente no rito de Paulo VI, este rito da nova missa já não é suficiente para assegurar a validade. É precisamente por isso que o Breve Exame Crítico prevê o estranho caso desses sacerdotes que poderiam se referir a um rito anteriormente conhecido (o do Missal dito “de São Pio V”) para sanar as deficiências do novo rito do Missal de Paulo VI, e eliminar sua indeterminação[9]. E o Breve Exame Crítico também prevê o outro caso daqueles sacerdotes que não terão conhecimento do significado do rito católico da Missa e que não poderão eliminar a indeterminação do novo rito: serão esses sacerdotes “que no futuro próximo não terão recebido a formação tradicional e que confiarão no Novus ordo para fazer o que a Igreja faz, serão capazes de consagrar validamente? É legítimo duvidar disso”.

12. D. Lefebvre insistia na importância deste juízo: “Tive a oportunidade […]  de reler o pequeno livro que conheceis bem, o Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae, que foi aprovado pelos Cardeais Ottaviani e Bacci. Há uma nota neste livrinho que é muito útil reler a propósito das palavras de consagração, que, desde a introdução do novo ordo, têm sido motivo de muitas discussões e considerações. Posso dizer-vos que o que está lá representa o que eu pessoalmente sempre considerei ser a avaliação mais precisa da validade ou invalidade do Novus ordo missæ. Isso tem sua importância, devido às atuais discussões sobre este assunto” [D. Lefebvre cita a passagem acima]. Veja, isso é o que eu sempre afirmei: haverá cada vez mais Missas inválidas devido a formação de jovens sacerdotes que já não terão a verdadeira intenção de fazer o que a Igreja faz. Fazer o que a Igreja faz significa fazer o que a Igreja sempre fez, o que a Igreja faz de uma forma – diria quase se assim se pudesse dizer – eterna. Portanto, esses jovens sacerdotes não terão a intenção de fazer o que a Igreja faz, porque não terão sido ensinados que a Missa é um verdadeiro sacrifício. Eles não terão a intenção de fazer um sacrifício; terão intenção de fazer uma Eucaristia, uma partilha, uma comunhão, um memorial, que nada tem a ver com a fé no sacrifício da Missa. Então, nesse momento, a medida que esses padres deformados não tiverem mais nenhuma intenção de fazer o que a Igreja faz, as Missas tornar-se-ão, obviamente, cada vez mais inválidas”[10].

13. Este risco de invalidade resulta, em última análise, de uma deficiência ao nível do sinal. A Missa é, por definição, um sinal, como qualquer sacramento. Ela é, para retomar a feliz expressão do Pe. Gigon[11], o “sacramento do Sacrifício da Cruz”, sacrificii crucis sacramentum. O novo Missal de Paulo VI é defeituoso (imperfeito) precisamente porque “se afasta” desta definição católica da Missa: este afastamento é o de um sinal diminuto, a ponto de se tornar equívoco, ao nível da expressão da Lei da fé, e incorrer no risco de invalidade quanto à eficácia do sacramento.

14. É por isso que este novo Missal de Paulo VI não pode revogar o Missal dito “de São Pio V”, em uso na Santa Igreja até a reforma litúrgica que se seguiu ao Concílio Vaticano II. O vínculo com o Missal tradicional justifica-se, assim, por razões verdadeiras e sérias, que são, antes de tudo, razões de ordem doutrinal, duplamente fundadas ao nível do dogma e da teologia.

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Courrier de Rome n°649

Notas de rodapé

  1. Decreto sobre o Santo Sacrifício da Missa, Capítulo II, DS 1743.
  2. Ibid.
  3. Summa Theologica, tertia pars, questão 83, artigo 5, ad 3.
  4. A palavra anamnese (do grego: lembrança, comemoração) designa para os liturgistas uma fórmula especial do Cânon da Missa que segue imediatamente as palavras da consagração e que equivale às palavras: “haec quotiescumque, etc”.
  5. Summa Theologica, Tertia pars, questão 78, artigo 5: “Non obstat quod sacerdos etiam recitative profert quasi a Christo dicta. Quia propter infinitam virtutem Christi […] ex prolatione ipsius Christi haec verba virtutem consecrativam sunt consecuta a quocumque sacerdote dicantur ac si Christus e praesentialiter proferret”.
  6. Summa Theologica, 1a pars, questão 39, artigo 5.
  7. Cardeais Ottaviani e Bacci Breve Exame Crítico, nota 15, página 30.
  8. Summa Theologica, Tertia pars, questão 83, artigo 4, ad 9.
  9. Esta situação corresponde hoje, por exemplo, à dos padres bi-ritualistas, que celebram habitualmente a Missa de São Pio V e ocasionalmente a nova missa. Mas pode-se perguntar se o Motu proprio Traditionis custodes não condena esta espécie de celebrantes ao desaparecimento…
  10. Conferência espiritual em Ecône, 8 de fevereiro de 1979, incluída no livro produzido sob a direção do padre Troadec, La Messe de Toujours, p. 372-374.
  11. André-Charles Gigon, O.P. (1892-1977) foi professor de história eclesiástica e direito canônico no convento de Saint-Maximin, então professor de teologia na Universidade de Friburgo, na Suíça. Parte de seu curso foi publicada na forma de livretos, pelas Edições Saint Pierre Canisius, Friburgo. Há notavelmente um De sacramentis in communi (1945).